2012

A moderna experiência do progresso

por Marcelo Jasmin

Resumo

As transformações que acompanharam a constituição da disciplina capitalista do trabalho envolveram um sem número de aspectos da vida cotidiana das pessoas, tanto dos camponeses como dos habitantes do espaço urbano. Paralelamente ao desenvolvimento da divisão do trabalho e à inovação tecnológica que aumentavam a produtividade humana, os habitantes do moderno mundo industrial assistiram à criação e ao refinamento de instrumentos cada vez mais precisos de medição do tempo que, por sua vez, sob a forma da “tirania do relógio”, reforçavam as capacidades de extração de mais valor do trabalho pela redução drástica da sua ociosidade.

Neste contexto de aumento do controle e da aceleração temporais através da associação entre invenção e aplicação tecnológicas de um lado e, de outro, aumento da riqueza socialmente produzida, o tema do progresso se impôs, inicialmente, como condição de possibilidade da emergência e da consolidação da nova civilização.

Não era uma novidade para as culturas ocidentais reconhecerem no “aumento”, no “crescimento” ou na “melhoria” de aspectos determinados da vida social – o aperfeiçoamento da ciência ou da técnica, o aumento da produção e da circulação de mercadorias, o crescimento da riqueza do reino, etc. – um fator positivo da existência comum. Também não eram desconhecidas nem concepções que apontavam para a possibilidade humana de alcance da perfeição, nem perspectivas comparadas que apontassem a superioridade cultural de certas épocas ou nações sobre outras a partir de critérios definidos de valor.


Para tratar do tema do progresso no contexto do presente ciclo, pretendo explorar alguns aspectos significativos do pensamento, das práticas e das mentalidades sociais, que se opõem, em grande medida, à noção e à experiência da preguiça. Sabemos que, em suas acepções contemporâneas, progresso sugere a necessidade do movimento, do avanço, da expansão, de uma atividade constante, quando não frenética, em direção a algo que se supõe melhor. Nesse sentido, o termo progresso traz consigo componentes de inquietação e de ânimo que se opõem frontalmente ao repouso ou à quietude.

É certo, porém, que nem toda visão do progresso opôs-se diretamente ao desejo da preguiça ou do ócio. Muitas utopias tecnológicas trouxeram a promessa de que a substituição da força humana pela máquina resultaria no fim do trabalho obrigatório, daquele que se faz sem que se o deseje, liberando os indivíduos, na posse de seu próprio tempo, para realizar as suas melhores capacidades. Algo disso persiste de modo difuso em alguns horizontes contemporâneos de futuro, mas não penso que devamos acreditar que foi essa, ou que é essa, a principal destinação da tecnologia. Se o desenvolvimento tecnológico trouxe, inequivocamente, a liberação de enorme quantidade de força de trabalho humana de muitos setores da vida produtiva, em particular de atividades manuais e de cálculo repetitivo, quantidade equivalente dessa força foi reinscrita em outras atividades de trabalho obrigatório. Afinal, a condição da sobrevivência nas modernas sociedades de massas, exceto para ricos, sortudos e escroques de diversa natureza, permanece sendo a labuta diária do trabalhador.

Poderemos sempre imaginar que essa condição é apenas uma fase temporária do progresso da civilização humana e que, num futuro não tão longínquo, a tecnologia nos permitirá realizar o sonho da liberação do trabalho obrigatório. Pode ser que sim. Afinal, como já notara Thomas Hobbes em seu Leviatã, dado que as coisas do futuro não têm existência alguma, senão como expectativa e ficção que ocupam a mente presente, parece ocioso restringir a projeção do desejo na imaginação do tempo que virá. Mas, quando pensamos no contraste agudo entre as utopias futuristas generosas da civilização europeia nos séculos que se seguiram ao Leviatã e a experiência vivida de lá para cá, parece razoável supor, com boa dose de prudência, que pode vir a prevalecer, no futuro próximo, justamente o contrário daquela desejada liberação, e que a tecnologia continue a demandar o trabalho obrigatório, afastando do direito ao ócio e à preguiça, assim como do trabalho desejado, amplas camadas da população.

Embora a imaginação dos futuros possíveis seja fascinante, a minha contribuição para este volume não se arriscará nessa direção. Com menor pretensão, quero relembrar algumas experiências e alguns argumentos que, ao longo dos séculos XVI ao XIX, constituíram e desdobraram as bases do que aqui apresento como a moderna experiência do progresso.

Uma questão prévia, entretanto, precisa ser referida desde logo: moderna por quê?[1] Minha hipótese é a de que, embora se possa falar de crescimento, aumento, desenvolvimento, progressão, sucessão, melhoria, e outros tantos termos afins presentes nas linguagens do período clássico da civilização ocidental, nenhum dos usos dessas acepções pode se confundir com o significado primordial que o termo “progresso” expressou a partir de finais do século XVIII, a saber, o de um processo histórico universal, abrangendo toda a humanidade, que a trouxe da rudeza à civilização, numa melhoria permanente, embora não necessariamente linear, do passado ao presente, e cuja explicação racional e imanente autorizaria a expectativa, quando não a certeza científica, de sua continuidade em relação ao futuro[2].

Sem dúvida, o mundo grego dos séculos V e IV a.C. manifestou o seu orgulho próprio na consciência de suas conquistas civilizatórias, como, por exemplo, a pólis e a medicina hipocrática?[3]. Contudo, essa consciência de superioridade sempre encontrou os limites de sua extensão para o futuro nas noções de perfeição e de excelência, assim como na desconfiança clássica em relação ao infinito[4]. Além disso, a cosmologia antiga não era especialmente hospitaleira a uma independência do homem para realizar seu progresso autônomo, como denuncia a noção de moira, “a ordem normativa do universo que mantém tudo, tanto física como moralmente, nos limites da sua natureza”[5].

No período do cristianismo, romano, encontramos expectativas de satisfação com a melhoria das condições de vida no mundo após a vinda de Cristo, geralmente associadas à duração da Pax Romana e ao espraiamento da religião cristã pelas fronteiras do mundo, como em Tertuliano. Mas o monumento filosófico do cristianismo clássico que é a obra de Santo Agostinho, e especialmente a sua compreensão da queda do Império Romano sob a espada de Talarico, tal como exposta em A cidade de Deus, recusa e critica radicalmente qualquer expectativa de progresso mundano. O progresso, se há, está restrito à dimensão espiritual da alma e se refere à salvação de cada um após a morte. O mundo sublunar não é o lugar da vida melhor e da felicidade. É fato conhecido que muitos milenarismos tentaram escapar à ortodoxia agostiniana, mas é também notório que foram derrotados e pereceram por suas próprias inconsistências ou pela repressão implacável à heresia. A vida boa não aparece aqui nem como resultado da atividade humana, nem como acontecimento mundano. Ela depende da vontade divina e do Juízo Final[6].

Devemos esperar até o século XII para reconhecer sinais mais claros de que o pensamento ocidental acataria positivamente uma noção de tempo que admitisse a melhoria consistente das condições de vida no futuro mundano. O neoplatônico francês Bernard de Chartres comparou seus contemporâneos a anões pousados nos ombros de gigantes, os antigos, e por isso capazes de ver mais além do que esses. O frei franciscano Roger Bacon, no século XIII, afirmou que os homens poderiam, sempre, em épocas posteriores, acrescentar ao conhecimento já adquirido pelos antigos[7].

Mas é com o humanismo e o Renascimento italianos que teremos a afirmação, ainda que muito circunscrita ao conhecimento adquirido pelos círculos intelectuais e literários, da superioridade do presente em relação ao passado. No entanto, essa modernidade superior se afirmou basicamente em relação ao seu passado recente, que será chamado de tempo médio, e que separava a glória do mundo clássico daquela que os humanistas acreditaram estar realizando. No entanto, a própria noção do renascimento das artes e da ciência, primeiro como imitação do paradigma clássico, para depois torná-lo mais perfeito, nos dá a dimensão dos limites do progresso aí representado.

O século XVII abriu novas perspectivas. Podemos pensar como Francis Bacon, com a sua concepção da “verdade como filha do tempo” (ventas filia temporis) expressa no Novum Organum, de 1620, recusou autoridade especial aos antigos e abriu ao futuro a conquista de verdades superiores. Ou então na afirmação de Blaise Pascal, no prefácio do seu Tratado sobre o vazio (Traité sur le vide), de que “todos os homens em conjunto realizam um progresso à medida que o universo envelhece”, e que “a sucessão dos homens, ao longo do curso de tantos séculos, deve ser considerada como um mesmo homem que subsiste sempre e que aprende continuamente”[8]. Esses são indícios mais seguros de uma nova mentalidade progressista do tempo que acredita na abertura do futuro para a realização de uma vida melhor conforme a razão e a ciência.

Não seria difícil compreender, a partir da noção de revolução científica do século XVII, como as sucessivas descobertas de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton inspiraram a convicção de que a razão encontrara um novo rumo superior ao se desvencilhar das verdades do mundo católico medieval, que faziam depender da dispensação da vontade divina a possibilidade de acesso à verdade. Mais do que a certeza de que se explicava melhor o mundo natural, importa salientar a consciência de que o novo modo de conhecer abrira uma possibilidade inédita de domínio sobre a natureza em benefício do homem. A aplicação do conhecimento científico na vida cotidiana — a tecnologia — se insinua aqui como a conquista maior da humanidade em sua caminhada para estabelecer o seu poder sobre todas as coisas.

No entanto, para que a moderna noção de progresso se afirmasse plenamente em sua autonomia e temporalização, foi necessária a generalização desse otimismo, inicialmente restrito aos campos científico e tecnológico, para todos os domínios da experiência humana, alcançando a esfera da moralidade, e mesmo a da religião, de modo a se poder afirmar não só o progresso disto ou daquilo em particular, da progressão de alguma instância específica, ou de um “substrato concreto” qualquer, mas “o Progresso”, referido à espécie em geral, no conjunto da sua experiência. Afinal, o que distinguiu o moderno conceito de progresso de outras formas de consciência da melhoria ou do desenvolvimento humanos foi justamente a crença na consistência e na permanência do avanço da humanidade que se ancorava na suposição da existência de um motor imóvel que a fazia mover-se numa dada direção, que não só a trazia do passado ao presente, mas que também continuaria a promover a sua caminhada em direção a um futuro luminoso.

***

Duas hipóteses orientam a exposição do que se segue. A primeira, mais histórica, é a de que foi esta, e não qualquer outra consciência do progresso, que produziu a crítica ferrenha da preguiça, do ócio e de seus correlatos, como a quietude e a contemplação. A segunda, mais especulativa, é a de que o nosso mundo contemporâneo, embora não acredite mais nem nos pressupostos, nem nas conclusões que fizeram a glória do progresso até o fim do século XIX, permaneceu prisioneiro de lógicas do avanço necessário e permanente, sem que se saiba muito bem nem para onde, nem para quê.

Minha exposição está dividida em três partes, todas elas buscando explorar relações críticas entre a preguiça e o progresso.

Na primeira eu gostaria de explorar alguns momentos que, anteriores à Revolução Industrial, constituíram as condições de sua possibilidade no âmbito do trabalho fabril, transformando tempo em dinheiro e disciplinando, pela violência, a força de trabalho para adequá-la ao aparelho produtivo do capitalismo industrial nascente. O que, num primeiro momento, foi parte da lógica de acumulação primitiva do capital parece ter se transformado num processo autônomo, permanente e colonizador da vida, ainda que o trabalho industrial tenha deixado de ser a única ou principal forma de trabalho na contemporaneidade.

Na segunda parte trato de aspectos espirituais, de origem religiosa, que fundaram a crítica puritana à preguiça e ao ócio como sinais da maldição, e a glorificação do trabalho regular como praticamente a única contribuição possível dos crentes para a obra de Deus na terra dos homens. Tais aspectos constituíram uma ética implacável do trabalho e uma perspectiva de acumulação de capital que também se transformaram em processos autônomos e ativos, mesmo quando seus fundamentos religiosos tradicionais deixaram de ter o vigor de suas origens.

Na terceira e última parte quero me dedicar às filosofias da história que, na passagem do século XVIII ao XIX europeus, justificaram racionalmente a perspectiva do progresso da humanidade, fornecendo-lhes sua racionalização e vislumbrando futuros luminosos cujo alcance dependeria, ainda que em parte, de um investimento incessante da razão e da ação humanas dirigidas ao télos da história, o que exigiria a crítica da preguiça e do ócio. Quero pensar aqui como, mesmo após o esvaziamento de qualquer possibilidade de antecipação temporal do télos histórico, permaneceram operantes noções contemporâneas de história universal como um processo autônomo e progressivo que envolve obrigatoriamente o conjunto da humanidade.

A OBRIGAÇÃO AO TRABALHO FABRIL NOS PRIMÓRDIOS DO CAPITALISMO INDUSTRIAL[9]

Comecemos pela crítica à preguiça, ao ócio e à vagabundagem tal como se deu nos primórdios do capitalismo moderno. Partamos do seguinte: nós, seres modernos, muitas vezes duvidamos que a disciplina de trabalho regulado pelo tempo do relógio, imposta pelo capitalismo industrial, seja a melhor maneira de viver a experiência produtiva. Aliás, as contribuições para o presente livro partem do extremo desconforto e da sensação do absurdo a que nos submete a organização do tempo na vida contemporânea, da qual temos dificuldades de nos afastar.

Mas para nós, homens e mulheres do mundo moderno, essa exaustão se dá num contexto em que já são conhecidas, introjetadas e rotinizadas as normas de conduta da vida econômica capitalista. Por “educação, tradição, costume”, como afirmava Marx em O capital, reconhecemos as exigências do mundo do mercado como espécies de “leis naturais evidentes”[10]. Ou, como formularia Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, a ordem econômica do capitalismo é o “imenso cosmos” dentro do qual nasce o indivíduo moderno, e que a ele se apresenta como um “fato” inescapável, uma espécie de segunda natureza na qual tem que viver[11]. De modo que ou nos adaptamos às exigências da racionalidade econômica capitalista, ou somos eliminados, seja da concorrência, seja do emprego, e perdemos a capacidade de sobreviver no mundo do mercado. Mesmo as sociedades comunistas do século XX, embora não pretendessem ser regidas pelos princípios do mercado, acabaram adotando lógicas produtivistas semelhantes àquelas instauradas pelo capitalismo industrial.

Imaginemos agora o que acontecia antes que essa espécie de segunda natureza tivesse se imposto aos costumes sociais. Se olharmos em perspectiva histórica, perceberemos que a ideia de trabalhar repetidamente um número fixo de horas por dia, independentemente da atividade concreta a que se dedica o trabalhador, e também a despeito das condições da natureza que o envolve — como o clima, a hora do dia, a idade do indivíduo etc. —, era muito mais estranha aos homens e mulheres na aurora do moderno capitalismo industrial, entre os séculos XV e XVII, do que é para nós, apesar de nosso estranhamento. A transição de um mundo camponês-artesão para a sociedade industrial madura exigiu a radical reestruturação dos hábitos de vida, a adoção de disciplinas e formas de incentivo à produtividade que produzissem corpos e mentes adequados às condições do trabalho fabril. Penso nesse contexto como o da formação de uma nova natureza humana capaz de operar o aparato industrial, regularmente e de modo ininterrupto, como aquele operário representado por Charles Chaplin em Tempos modernos. A imposição dessas novas normas do trabalho, que são regras de ordenamento da vida em geral, se deu por um processo conflituoso que envolveu tanto a violência física, para obrigar a mão de obra disponível a se transformar em força de trabalho adaptada ao novo modus operandi, como a difusão de aspectos mentais e ideológicos que as introjetaram, progressivamente, na alma do homem moderno.

Em seus estudos sobre a formação da classe operária inglesa, o historiador inglês Edward P. Thompson propôs a distinção entre dois tipos de organização da disciplina do trabalho, distinção que nos auxilia na compreensão da crítica ao ócio e à preguiça que acompanhou os primórdios do capitalismo moderno. De um lado, temos uma orientação do trabalho que parte das tarefas concretas que têm de ser realizadas, como plantar, colher, ordenhar, tecer, lenhar etc. Esse tipo de orientação é predominante nas sociedades tradicionais, especialmente antes da industrialização, e se caracteriza pelo desempenho das funções do trabalho, geralmente múltiplas e variadas, numa sequência que é sugerida pela necessidade imediata, imposta pela natureza. o tempo de trabalho é variável, dependendo do que há para fazer, seja ao longo de um dia, seja a cada dia ao longo dos anos, de modo que o mesmo trabalhador realiza tarefas diversas faça sol ou chova, seja dia ou noite, seja tempo de plantar ou de colher, e assim por diante. No caso dos pescadores, por exemplo, o trabalho se organiza em função do movimento das marés, que pode obrigar a dias de navegação em alto-mar ou a não navegar de todo por falta de condições marítimas ou meteorológicas. Nessa orientação do trabalho pelo “tempo-tarefa”, ou ainda pelo “que fazer”, o trabalho dura o tempo necessário para a realização da finalidade específica daquela tarefa, interrompendo-se tão logo esta seja concluída.

De outro lado, temos um segundo tipo de orientação do trabalho ordenado pelo cumprimento de certa quantidade de tempo, certo horário de trabalho, que independe, quase sempre, da especificidade da tarefa desempenhada. Caracteriza essa segunda forma de disciplina o fato de que o sentido do trabalho não é dado pela necessidade imediata ou autoevidente do que se tem a fazer, pela tarefa em si, mas por algo que lhe é exterior: a quantidade de tempo que se deve trabalhar. Isso confere às normas do trabalho uma abstração que contrasta com a aparente “naturalidade” clã orientação ao que fazer. Esse segundo tipo de orientação do trabalho organizou a disciplina industrial e difundiu o controle e a notação abstrata do tempo pelo relógio, cada vez mais precisa nas suas frações: horas, minutos, segundos etc.

É fascinante conhecer a antropologia e a história social das mudanças da percepção interna do tempo, e de sua notação, no estudo da transição entre o trabalho desempenhado nas comunidades tradicionais, orientado ao que fazer, e o trabalho controlado pelo número de horas. No contexto do tempo-tarefa, não havendo necessidade de uma marcação muito precisa do tempo como aquela que conhecemos desde o trabalho industrial, notações muito diversas foram usadas para medir a passagem do tempo.

Em tribos de Madagascar, no século passado, podia-se medir o tempo pelo “cozimento do arroz” ou pelo “fritar um gafanhoto”[12]. No sudeste da Nigéria (Cross River) ouviu-se dizer que “o homem morreu em menos tempo do que leva o milho para assar”. No Chile, em 1647, um terremoto foi descrito como tendo durado cerca de dois Credos, e um ovo, dizia-se, devia ser cozido pelo tempo de uma Ave-Maria rezada em voz alta. Ainda no século XX, monges da Birmânia esperavam que houvesse luz suficiente para ver as veias de suas mãos antes de se levantarem pela manhã. Pierre Bourdieu surpreendeu percepções argelinas que viam a pressa como uma “falta de compostura” e uma “ambição diabólica”, e que chamavam o relógio de “oficina do diabo”. E o New English Dictionnary registrou o uso do termo“pissing while” (tempo de fazer xixi) como uma medida de tempo.

Notações dessa natureza, com o seu aparente descompromisso com a precisão na marcação do tempo, são compatíveis com a orientação do trabalho por tarefas que predominou, e ainda existe, em sociedades camponesas, ou entre artesãos independentes, cujo trabalho se compõe da realização, do início ao fim, de cada uma das partes de sua tarefa.

Mas tão logo encontramos relações de trabalho baseadas na contratação de mão de obra, assistimos à substituição do tempo-tarefa pelo tempo regulado pelo horário, mesmo antes que o mecanismo do relógio pudesse registrar as horas com alguma precisão. É que no contexto do trabalho contratado o tempo “está começando a se transformar em dinheiro”. No início do moderno capitalismo industrial, argumenta o historiador britânico, os contratados “experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu ‘próprio’ tempo”. Isso porque cabe ao empregador “usar o tempo” da mão de obra contratada “e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina [aqui] não é [mais] a tarefa, mas o valor do tempo quando reduzido a dinheiro”. Se o tempo é transformado em moeda, ninguém mais passa o tempo; o tempo agora é gasto[13].

Impossível não lembrar aqui do célebre Conselho a um jovem comerciante (Advice to a young tradesman), escrito em 1784 por Benjamin Franklin, e que é apresentado por Max Weber como o paradigma do espírito do capitalismo:

Lembra-te de que tempo é dinheiro, aquele que com seu trabalho pode ganhar dez xelins ao dia e vagabundeia metade do dia, ou fica deitado em seu quarto, não deve, mesmo que gaste apenas seis pence para se divertir, contabilizar só essa despesa, na verdade gastou, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais[14].

Salientemos, então, em primeiro lugar, que estamos falando da formação de um universo material e espiritualmente novo, caracterizado pela noção, hoje tão difundida, de que o tempo é algo que se “gasta”. E, em segundo, que, até que esse tipo de concepção do tempo fosse socialmente predominante, foi necessário que aqueles trabalhadores, artesãos ou camponeses, tradicionalmente orientados pelo tempo-tarefa, fossem inscritos na nova disciplina do trabalho repetitivo, especializado, controlado abstratamente pelas horas do relógio, independentemente do tipo de tarefa a ser desempenhada.

Recorro aqui às páginas eloquentes de Karl Marx quando descreveu os vários processos que constituíram a acumulação primitiva de capital, aquela dissociação, necessária à instauração do capitalismo industrial moderno, entre, de um lado, o capital e, de outro, a força de trabalho livre e assalariada. Após descrever como as comunidades camponesas, tradicionalmente vinculadas à propriedade feudal, foram expulsas das terras em que viviam pela violência dos landlords ingleses, e como, através do cercamento dos campos, instaurou-se a moderna propriedade privada pela extinção das relações de vassalagem e de servidão, Marx analisa o destino das milhares de famílias camponesas lançadas, num curto período de tempo, ao mundo do trabalho urbano assalariado, então em formação.

Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como os pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do século XV e durante todo o XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que [por sua vez] já não existiam [mais][15].

Marx historia, então, a prolífica legislação dirigida aos pobres, mendicantes e vadios de toda ordem, que foi elaborada na Inglaterra desde finais do século XVI. Aquela que mais importa para avaliarmos as relações entre o progresso e a preguiça é a que definiu como criminosa tanto a vadiagem como a recusa ao trabalho por parte de indivíduos sadios. A lista dos estatutos não é pequena e é muito repetitiva, e transcrevo resumidamente alguns de seus aspectos:

Henrique VIII, 1530: Esmoleiros velhos e incapacitados para o trabalho recebem uma licença para mendigar. Em contraposição, açoitamento e encarceramento para vagabundos válidos. Eles devem ser amarrados atrás de um carro e açoitados até que o sangue corra de seu corpo, em seguida devem prestar juramento de retornar a sua terra natal ou ao lugar onde moraram nos últimos três anos e “se porem ao trabalho”.

Alguns anos depois,

ainda sob o mesmo Henrique: Aquele que for apanhado pela segunda vez por vagabundagem deverá ser novamente açoitado e ter a metade da orelha cortada, na terceira reincidência, porém, o atingido, como criminoso grave e inimigo da comunidade, deverá ser executado.

Eduardo VI: Um estatuto de seu primeiro ano de governo, 1547, estabelece que, se alguém se recusar a trabalhar, deverá ser condenado a se tornar escravo da pessoa que o denunciou como vadio… O dono [tem] o direito de forçá-lo a qualquer trabalho, mesmo o mais repugnante, por meio do açoite e de correntes. Se o escravo se ausentar por 14 dias será condenado à escravidão por toda a vida e deverá ser marcado a ferro na testa ou na face com a letra s [de escravo, em inglês slave]; caso fuja pela terceira vez, será executado como traidor do Estado […]. Se se verificar que um vagabundo está vadiando há três dias, ele deve ser levado a sua terra natal, marcado com ferro em brasa no peito com a letra v [de vagabond, vadio] e lá posto a ferro para trabalhar na rua ou ser utilizado em outros serviços […]. Todas as pessoas têm o direito de tomar os filhos dos vagabundos e mantê-los como aprendizes, os rapazes até 24 anos e as moças até vinte. Se fugirem, eles devem, até essa idade, ser escravos dos mestres, que podem acorrentá-los, açoitá-los etc., conforme quiserem […].

Elisabeth, 1572: Esmoleiros sem licença e com mais de 14 anos de idade devem ser duramente açoitados e terão a orelha esquerda marcada a ferro, caso ninguém os queira tomar a serviço por dois anos; em caso de reincidência, se com mais de 18 anos, devem ser executados, caso ninguém os queira tomar a serviço por dois anos; numa terceira incidência, serão executados sem perdão, como traidores do Estado[16].

Etc. Desse modo, os camponeses tornados mendigos e vagabundos pelo cercamento dos campos foram transformados, pela coerção extra-econômica, em força de trabalho, inclusive escrava, para as manufaturas e indústrias, movimento que parece ter perdurado até o início do século quando a rotina da disciplina industrial e a naturalização do trabalho assalariado substituíram a violência estatal na regulação de uma oferta estável de mão de obra.

A CRÍTICA RELIGIOSA DA PREGUIÇA E A ÉTICA PROTESTANTE DO TRABALHO[17]

Note-se, todavia, que não se tratava apenas de forçar os vadios a trabalhar. Tornara-se necessário disciplinar a força de trabalho para fazê-la produzir no tipo de labor seriado e ininterrupto da indústria em contexto de contratação assalariada. Como já referido acima, para os camponeses recém-expulsos do campo, acostumados à vida orientada pelo tempo-tarefa, as normas do trabalho fabril pareciam sem sentido quando contrastadas com os costumes do trabalho variado e irregular cuja rotina lhes era compreensível, pois derivada da necessidade imediata tradicional. Adotar as novas regras implicava uma verdadeira transformação mental, uma alteração radical no sentido da experiência e das noções de trabalho e de vida. Especialmente notável a esse respeito foi o fracasso das primeiras tentativas de aumentar a produtividade do trabalho pela via dos incentivos financeiros aos trabalhadores oriundos da experiência tradicional do tempo-tarefa. Ao ganharem um pouco mais do que o costumeiro, não se punham a trabalhar mais com vistas a enriquecer. Pelo contrário, passavam a trabalhar menos, o suficiente para receber aquela mesma quantia que anteriormente lhes permitia sobreviver. Foi frequente nos séculos iniciais do capitalismo, e nos vários contextos em que a rotina cultural do trabalho orientado pelo relógio não se tenha imposto, a atitude de só voltar a trabalhar quando o dinheiro ganho chegasse ao fim e se impusesse a necessidade “natural” de uma nova remuneração. Talvez esta tenha sido a razão da crença, difundida no início da modernidade, de que os salários baixos eram os mais produtivos e os melhores para aumentar o rendimento do trabalho, pois o povo só trabalha porque é pobre, e enquanto for pobre”[18] . Por isso também vários dos Estatutos dos trabalhadores, publicados entre 1349 e 1813, e citados por Marx no referido estudo, estabeleciam os valores máximos para os salários pagos pelos patrões aos seus empregados, mas não os valores mínimos, garantindo, assim, não só um patamar elevado de lucro para as manufaturas e indústrias, mas também, e talvez principalmente, o retorno diário do trabalhador à planta da fábrica.

Dar sentido à noção de que se deveria trabalhar sistematicamente mesmo quando a necessidade imediata já não o impusesse exigiu, portanto, uma revolução das estruturas mentais do mundo tradicional. Tal transformação foi, em grande parte, viabilizada pela emergência de novas ideologias que glorificaram o trabalho e criminalizaram o ócio e a preguiça. É nesse processo que o protestantismo, especialmente aquele de inspiração calvinista, exerceu o papel principal na árdua tarefa de incutir nas almas, e difundir através de seus sermões, a obrigatoriedade do trabalho em si, contribuindo, decisivamente, para internalizar, nas mentes modernas, a nova disciplina. Aqui, a violência da lei, do açoite e dos ferros foi substituída por um novo tipo de autoconsciência do trabalhador que o transformou, para usarmos a frase de Erich Fromm, em “feitor de si”[19]. Seria impossível refazer aqui o sofisticado percurso de pesquisas da sociologia da religião que levou Max Weber a concluir pelas afinidades eletivas entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Por isso, resumo a seguir alguns dos argumentos dessa tese que permitem esclarecer a crítica religiosa à preguiça e ao ócio.

Tomemos como ponto de partida a crença calvinista na predestinação das almas. Ao contrário do catolicismo tradicional, e na verdade contra ele, a Reforma afirmou a radical separação entre Criador e criatura, criticando todo tipo de negociação, pelos homens, de sua salvação perante a divindade. Por um lado, negou validade, e repudiou como sacrilégio, todos os meios mágicos, suprimindo de modo absoluto a perspectiva da salvação pela via eclesiástico-sacramental. Trata-se de passagem essencial à desmagificação do mundo religioso que esteve na base do que Max Weber denominou o desencantamento do mundo.

Como se lê na Confissão de Westminster, documento de 1647 que representa a fé reformada da tradição teológica calvinista, o homem, pelo pecado, perdeu toda a capacidade de, por seu esforço, alcançar a salvação. O Deus dessa fé se configura como ser transcendente, que escapa à compreensão mundana e que criou o mundo para servir à Sua glorificação. Na manifestação de Sua glória, Deus decretou que alguns seres humanos estão predestinados à vida eterna e outros à morte. Trata-se do decretum horribile e imutável da predestinação. A graça divina é tão imperdível por aqueles a quem ela foi concedida, como inacessível a quem ela foi recusada. A salvação ou a danação estão, desde sempre, decididas, e as ações dos homens não têm poder de modificar o destino pré-traçado. Ao contrário daquela contabilidade católica tradicional em que o crente compensa o pecado com o arrependimento e as boas obras, e que encontra no ritual da confissão algum alívio para a sua indelével condição de pecador, para o puritanismo está vedada a colaboração das almas para a sua eleição. O que fazer, então?

A resposta dogmática calvinista fornecia uma única alternativa: o crente deve tomar conhecimento da natureza do decreto divino e perseverar na confiança em Cristo, operada pela verdadeira fé. Não é possível reconhecer, pelo comportamento dos indivíduos, se são eleitos ou condenados, e experiências subjetivas, como aquelas da mística, são excluídas como enganosas. O único caminho é a firme convicção de quem crê e persevera até o fim. Contudo, como notou Max Weber e perceberam os crentes envolvidos na prática da cura de almas e no exercício cotidiano da fé, essa solução dogmática implicava um sentimento de extrema solidão interior.

Dois tipos de aconselhamento prático vieram para amenizar esse sentimento de desamparo. De um lado, e em consonância com a dogmática reformada, tornava-se dever do crente considerar-se eleito e repudiar a dúvida como tentação do diabo, pois a falta da convicção sugeria uma atuação insuficiente da graça. De outro, distinguiu-se o trabalho profissional sem descanso, na ampliação da glória de Deus na Terra, como o meio mais eficaz para se conseguir a autoconfiança da graça e dissipar a dúvida religiosa. Pois não sendo possível ter a certeza dos desígnios do Salvador, nem conquistar a graça divina, seja pela via de um meio mágico-sacramental, como a descarga na confissão, seja por obras pias, restava ao crente buscar em si mesmo a confiança de que era um eleito e não um condenado. Tratava-se, portanto, de buscar uma certeza subjetiva da presença da graça através de uma conduta intramundana que, ao fazer aumentar a glória de Deus na Terra, sugere ao crente sinais de eleição. Não se trata de salvação pelas obras, de contabilidade entre pecado e arrependimento, mas de uma autoafirmação da capacidade de enfrentar a dúvida sobre a eleição[20].

Na busca dessa certeza, certo tipo de atividade humana, o trabalho profissional, entendido como cumprimento sem descanso de um chamado divino, de uma vocação, desempenhará o papel primordial. É daqui que a ética religiosa configura uma atitude intramundana que reivindica atividade incessante a serviço de uma utilidade impessoal, destinada a promover a glória de Deus na Terra. O crente torna-se um instrumento da glória divina que se manifesta através dele, através da sua atividade.

A esse respeito são especialmente esclarecedores os comentários do sociólogo alemão sobre a piedade luterana comparada à perspectiva aberta pela fé calvinista:

A suprema experiência religiosa a que aspira a piedade luterana, tal como se desenvolveu notadamente no curso do século XVII, é a unio mystica com a divindade. Como já sugere a própria expressão, que nesses precisos termos é desconhecida da doutrina reformada, trata-se de um sentimento substancial de Deus: a sensação de uma real penetração do divino na alma crente, qualitativamente igual aos efeitos da contemplação à maneira dos místicos alemães e caracterizada por um cunho de passividade orientada a preencher a saudade do repouso em Deus e por um estado interior de pura disponibilidade […].Já a religiosidade específica da Igreja reformada […] de saída se colocou contra a fuga quietista do mundo defendida por Pascal, bem como contra essa forma luterana de piedade sentimental voltada puramente para dentro. A penetração real do divino na alma humana estava excluída pela absoluta transcendência de Deus em relação a tudo o que é criatura: finitum non est capax infiniti [o que é finito não é capaz de infinito]. A comunhão entre Deus e seus escolhidos e a tomada de consciência dessa comunhão só podem se dar pelo fato de Deus neles agir (operatur) e eles tomarem consciência disso — pelo fato, portanto, de a ação nascer da fé operada pela graça de Deus e essa fé, por sua vez, ser legitimada pela qualidade dessa ação. Profundas diferenças (portanto) quanto às condições decisivas para a salvação […]: o virtuose religioso pode certificar-se do seu estado de graça quer se sentindo como receptáculo, quer como ferramenta da potência divina. No primeiro caso, [como em Lutero] sua vida religiosa tende para a cultura mística do sentimento; no segundo, [como em Calvino] para a ação ascética [no mundo][21].

Ação ascética intramundana que, na sua sistematicidade, busca a separação do crente em relação ao homem natural, aquele indolente, preguiçoso, irregular, e que funciona, ao mesmo tempo, como estímulo ao controle metódico na condução da vida e como uma comprovação, sempre subjetiva, do estado de graça. Ação que se opõe, para usarmos os termos compilados por Weber, à “passividade”, ao “repouso”, ao “quietismo”.

Weber vai buscar mostrar, a partir daqui, como essa exigência de vida metódica orientada para o trabalho incessante sem outra finalidade que a ampliação da glória de Deus na Terra resultará num processo de produção de riqueza que, de modo inaudito, não deveria ser gasta na satisfação dos desejos de consumo ou no luxo, ambos condenados pela religião reformada. A riqueza acumulada só poderia destinar-se à mesma finalidade da glorificação da obra de Deus, o que implicou a poupança do dinheiro e sua reaplicação no processo de trabalho. Ou, em outras palavras, a acumulação propriamente capitalista.

Importante para o nosso tema é esse confronto entre, de um lado, a enorme produção sistemática da riqueza derivada da ética do trabalho e, de outro, a crítica do consumo que se confundia com os sinais da danação. Os ensinamentos do líder da Igreja Puritana da Inglaterra no século XVII, Richard Baxter, são particularmente significativos a esse respeito. Em seus compêndios morais, especialmente no Christian Directory, Baxter condena moralmente não a riqueza em si — pois esta é vista como sinal do sucesso da vida metódica prezada pelo puritanismo —, mas

o descanso sobre a posse, o gozo da riqueza com sua consequência de ócio e prazer carnal, mas antes de tudo o abandono da aspiração a uma vida “santa”. E é só porque traz consigo o perigo desse relaxamento que ter posses é reprovável. O “descanso eterno dos santos” está no Outro Mundo; na terra o ser humano tem mais é que buscar a certeza do seu estado de graça, “levando a efeito, enquanto for de dia, as obras daquele que o enviou”. Ócio e prazer, não; só serve a ação, o agir conforme a vontade de Deus inequivocamente revelada a fim de aumentar sua glória. A perda de tempo é, assim, o primeiro e em princípio o mais grave de todos os pecados. Nosso tempo de vida é infinitamente curto e precioso para “consolidar” a própria vocação. Perder tempo com sociabilidade, com “conversa mole”, com luxo, mesmo com o sono além do necessário à saúde — seis, no máximo oito horas — é absolutamente condenável em termos morais. Ainda não se diz aí, como em Franklin, que “tempo é dinheiro”, mas a máxima vale em certa medida em sentido espiritual: o tempo é infinitamente valioso porque cada hora perdida é trabalho subtraído ao serviço da glória de Deus. Sem valor, portanto, quando não diretamente condenável, é também a contemplação inativa, ao menos quando feita à custa do trabalho profissional. Pois ela é menos agradável a Deus do que o fazer ativo de sua vontade na vocação profissional. Além do que, domingo existe é para isso mesmo, e, de acordo com Baxter, são sempre os ociosos em sua profissão que não acham tempo para Deus nem sequer quando é hora[22].

Condenados estão, portanto, o ócio, a preguiça e mesmo o lazer quando fora dos limites do santo domingo. A glorificação do trabalho incessante, como finalidade em si mesma, reivindicou a organização racional da vida econômica e o ódio a tudo quanto se parecesse com a vida da contemplação.

Termino esta seção com um verso do poema “Acordar cedo” (Early rising), publicado em 1830 e escrito pela evangélica inglesa Hannah More, que, ao que tudo indica, tinha dificuldades de acordar cedo pela manhã, e que manifesta o tom da nova ideologia difundida séculos depois:

Sono suave abandone agora os meus olhos,/ Minhas forças estão todas renovadas;/ Que o meu espírito liberto também acorde,/ Dotado da força celestial! / / Oh preguiça, silenciosa assassina/ Não mais aprisione a minha mente;/ Nem me deixe perder mais uma hora/ Contigo, oh sono perverso[23].

Em conclusão a esta segunda parte, sugiro, com Max Weber, que, ao longo dos séculos que nos separam da reforma protestante, embora a crítica à preguiça e ao ócio tenha perdido o seu fundamento religioso, a validade dos dispositivos do trabalho regular e disciplinado e da acumulação per si, emancipada de sua gênese teológica, impõe-se ao mundo cotidiano pela via da racionalidade econômica. Se os motivos daquela crítica perderam a sua razão, manteve-se, no entanto, a vigência de seus resultados funcionais à estrutura do capitalismo moderno.

A FILOSOFIA ILUMINISTA DA HISTÓRIA

O último aspecto das relações entre progresso e preguiça que quero sublinhar como constitutivo do sentido moderno da experiência do progresso pode ser elaborado a partir da leitura das filosofias históricas do Iluminismo europeu, aqui representadas pela reflexão do filósofo maior do Esclarecimento alemão, Immanuel Kant[24]. Em 30 de setembro de 1784, Kant publicou, na revista mensal de uma sociedade de amigos do Iluminismo, um texto intitulado “Resposta à pergunta: Que é o ‘Esclarecimento?’ (Aufkliirung)” . Nesse texto, Kant buscou definir o termo que à época começava a ser utilizado na referência a vários processos que vinham sendo experimentados pela modernidade europeia[25].

Como sabemos, polêmicas em torno da definição de termos-chave não costumam ser controvérsias desinteressadas sobre o melhor modo de se descrever um fenômeno. Na disputa pelo significado de conceitos fundamentais, como democracia ou liberdade, as definições propostas circunscrevem normativamente a legitimidade racional do uso do termo, e, com ela, o campo de ação presente e futura que se abre aos contendores. E Kant tinha plena consciência de que era disso que se tratava na sua resposta.

O texto traz em seu primeiro parágrafo a mais notória definição do Iluminismo. “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.”Nesse sentido, Esclarecimento é movimento, é a saída de uma situação dada, claramente indesejável, e que por isso merece a pecha da menoridade. Quem é o menor? O próprio homem, e o responsável por isso é ele mesmo. Mas o que é menoridade? Kant a define na frase seguinte: “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”. Nesse sentido, o menor é aquele que, como a criança, deve ser representado por alguém que por ele se responsabiliza. Mas, no caso da criança, a necessidade do preceptor é natural, e mesmo desejável, até que ela alcance a maturidade. A menoridade infantil não é culpa da criança, mas uma imposição da natureza. O mesmo poderíamos dizer daqueles que são afetados, por razões alheias à sua vontade, pela “falta de entendimento”, como os loucos ou os anciães senis. Mas o homem de que fala Kant é o indivíduo plenamente dotado de suas faculdades e que, por motivos que estão ao seu alcance superar, permanece em estado infantil. A este, o que falta é a “decisão e a coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”. Daí a divisa do Esclarecimento: “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento”.

O Esclarecimento, assim formulado, é o movimento para fora da condição nefasta de menoridade, movimento cuja impulsão é dada pela vontade. Que o indivíduo se esclareça é algo que depende exclusivamente de sua decisão e responsabilidade. Mas por que, então, a humanidade não se esclareceu até aqui? O argumento prossegue: a “preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha, continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida”. Pois é cômodo ser menor, é confortável e fácil termos quem pense por nós e nos diga o que fazer[26].

Há algo no homem que o faz servir voluntariamente, que o leva a abdicar do uso ativo e constante das faculdades que lhe foram dadas pela natureza, em particular a sua razão. O filósofo, certamente, não é ingênuo. Sabe que há riscos políticos quando a razão se exerce livremente sob a ordem absolutista. Sabe, também, que o acomodar-se a “preceitos e fórmulas” tradicionais pode tornar a vida mais segura, sem os incômodos do enfrentamento com a autoridade instituída, seja esta civil ou eclesiástica, além de dispensar os indivíduos da inquietação com os questionamentos infindos da razão. Contudo, para Kant, manter-se na menoridade e apegar-se às verdades corriqueiras de uma época, sem examiná-las sob o crivo da crítica, é cometer “um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço” da razão [grifo meu].

A proposição explicita com toda a clareza a estrutura temporal que predominou no contexto do Iluminismo maduro. Assim como o Esclarecimento já representa o movimento de saída de uma condição atual indesejável através do revolucionamento dos modos de pensar descobertos pela modernidade, também o futuro encontrará novos avanços no sentido da verdade que o presente ainda não pôde alcançar. Pois é da ordem da “determinação original” da natureza humana “ampliar os seus conhecimentos […], purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento”[27]. Em outras palavras, o progresso do conhecimento está inscrito na própria natureza do ser humano, que consiste no permanente avanço que torna ilegítima a estagnação ou a satisfação definitiva num estado presente qualquer. O futuro não pode, portanto, ser pensado como a repetição do que já aconteceu: o devir é um processo infinito de mudança que resulta da atualização permanente da capacidade de progredir, inscrita na natureza humana.

O ponto se torna mais explícito quando lemos outro texto de Kant publicado em novembro do mesmo ano de 1784, intitulado Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, que representa o esforço mais sistemático do autor no sentido de elaborar uma filosofia da história. O breve texto de cerca de 15 páginas traz uma introdução seguida de nove proposições sobre a história universal. Em sua Terceira Proposição, lemos:

A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma felicidade ou perfeição senão daquela que ele proporciona a si mesmo, livre do instinto, por meio da própria razão[28].

Tirar inteiramente de si aquilo que se é, eis a condição que a natureza preparou para a humanidade. Os animais são sempre o que já são, vêm ao mundo e à vida com suas disposições plenamente formadas, com seus instintos inteiramente definidos, providos e guiados pelo “conhecimento inato”. Cada touro, ao nascer, já traz consigo, pré-formados, os seus chifres, o leão as suas garras e o cachorro os seus dentes, de modo que podemos conhecer antecipadamente a conduta desses animais, que sempre se mostram como seus antecessores e, podemos prever, como os seus sucessores. Mas os homens vêm ao mundo apenas com suas mãos, de modo que tudo que obtêm, “suas vestimentas, a conquista da segurança externa e da defesa”, assim como “todos os prazeres que podem tornar a vida agradável, mesmo sua perspicácia e prudência e até a bondade de sua vontade, tiveram de ser inteiramente sua própria obra”[29].

Diferentemente de todas as demais espécies animais, o homem, tudo o que faz e é, tira de si mesmo por meio de sua razão. Podemos surpreender aqui a dupla concepção iluminista da humanidade: por um lado, há uma natureza humana universal, sempre idêntica a si mesma, e que traz inscritas as faculdades formais do aperfeiçoamento e da razão; de outro, a exteriorização dessas faculdades fazem da humanidade um puro devir, uma permanente transformação, um incessante fazer-se de si, através da experiência da espécie, no tempo. E é essa concepção de natureza humana, inscrita na perspectiva iluminista da história filosófica, que reivindica a possibilidade de controlar o sentido, isto é, a direção e o significado, desse processo permanente de desenvolvimento que chamamos, justamente, o Progresso.

Kant reconhece as dificuldades de se antever o futuro desenvolvimento de uma espécie que se caracteriza pela presença ativa da liberdade. Se os homens fossem como os animais que repetem, instintivamente, o seu comportamento, não haveria dificuldades em prever o futuro da história. Se fossem anjos, ou “razoáveis cidadãos do mundo”, também poderíamos ter a certeza de que o futuro seria como deve ser para a razão. Mas não sendo nem uma coisa nem outra, como encontrar um plano adequado para pensarmos o sentido da história universal?

Mais uma vez, a noção de natureza vem em socorro do filósofo. Se não é possível encontrarmos um propósito racional, combinado entre os próprios homens, para a sua história, mas é conhecida a natureza humana, há que se buscar nesta um possível plano racional que confira sentido ao que, do ponto de vista do fenômeno, é “um curso absurdo das coisas humanas”. Propor um “plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio” significa, para Kant, a possibilidade racional de encontrar um “fio condutor” para a história que preserve a liberdade que é constitutiva da natureza humana[30].

Reaparece aqui o que Voltaire se esforçara por encontrar, ao que tudo indica sem conseguir, na história: o “fio condutor”, o princípio que permitisse à razão apreender a história em sua pluralidade e diversidade não apenas como um caos empírico, produzido pelas enlouquecidas paixões humanas, mas como uma ordem racional, como um processo que justificasse a saída do homem da rudeza e a sua realização como ser civilizado. É o mesmo fio condutor que Rousseau encontrara, em sua história hipotética da humanidade, na noção de perfectibilidade como faculdade intrínseca à natureza do homem, embora o resultado empírico de sua realização fosse, até aquele momento, a sociedade da iniquidade e do apreço pela aparência que deviam ser denunciados e corrigidos pela razão. É a mesma busca de racionalidade que Condorcet mais tarde afirmará encontrar na psicologia humana e na sua singularidade de linguagem, capaz de transmitir o conhecimento e a experiência no tempo, de modo que cada nova geração já iniciasse a sua vida num patamar superior de conhecimento e domínio de si e da natureza.

Como em todos esses próceres do Iluminismo, Kant buscou na natureza, e no modo especial pelo qual esta conformou o ser humano, o princípio de inteligibilidade da história dos homens. “Tendo dado ao homem a razão e a liberdade da vontade que nela se funda, a natureza forneceu um claro indício de seu propósito quanto à maneira de dotá-lo.” E é o conhecimento dessa natureza que permite tanto estabelecer as condições de possibilidade do progresso da espécie, como apontar o caminho em direção ao qual deve seguir a aventura humana sobre a Terra.

Não cabe aqui discutir a imaginação kantiana do futuro da humanidade como a constituição de uma sociedade civil que administre universalmente o direito no contexto cosmopolita de uma federação internacional que garantisse a paz entre os Estados, embora seja relevante lembrar que é este o télos para o qual se dirige a história. E não há espaço para a especificação da natureza do raciocínio teleológico que o sustenta. Para o tratamento do nosso tema, importa descrever, ainda que brevemente, o mecanismo filosófico da afirmação do progresso que exigiu a crítica da preguiça e da indolência como condições de possibilidade da realização desse télos histórico, que é, afinal, para Kant, a manifestação plena da natureza humana.

Tal mecanismo encontra-se mais bem descrito na famosa concepção da “insociável sociabilidade”, exposta na Quarta Proposição da Ideia, que caracteriza os meios de que se serve a natureza para realizar o seu propósito na sociedade humana. A proposição é tão central para a condenação da preguiça que constitui a experiência moderna do progresso, que a transcrevo longamente:

O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, a tendência dos mesmos a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade […]. Esta oposição é a que, despertando todas as forças do homem, o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação (Herrschsucht) ou pela cobiça (Habsucht), a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não atura mas dos quais não pode prescindir. Dão-se então os primeiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem […]. Sem aquelas qualidades da insociabilidade — em si nada agradáveis —, das quais surge a oposição que cada um deve necessariamente encontrar às suas pretensões egoístas, todos os talentos permaneceriam eternamente escondidos, em germe, numa vida pastoril arcádica, em perfeita concórdia, contentamento e amor recíproco: os homens, de tão boa índole quanto as ovelhas que apascentam, mal proporcionam à sua existência um valor mais alto do que o de seus animais, eles não preencheriam o vazio da criação em vista de seu fim como natureza racional. Agradeçamos, pois, a natureza pela intratabilidade, pela vaidade que produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam sem desenvolvimento num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamente, mas a natureza quer que ele abandone a indolência e o contentamento ocioso e lance-se ao trabalho e à fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem inteligentemente dos últimos[31].

A natureza deu ao homem uma dupla necessidade constituída em antagonismo: por um lado, um impulso de associar-se, pois fora da sociedade o homem não se sente nem se reconhece como tal, por outro, um impulso de isolar-se, um querer egoísta de que tudo seja como deseja para si e para a sua exclusiva satisfação. O homem precisa “aturar” aquilo de que não pode “prescindir”: o outro. O resultado do encontro dessas forças antagônicas na sociedade é o desejo de emulação, a competição e a disputa entre os indivíduos, que despertam as suas faculdades e as realizam no mundo na forma do avanço da humanidade sob a direção da razão. É essa capacidade conflituosa, bélica mesmo, que tira o homem de seu estado de rudeza, da tranquila vida pastoril arcádica, do viver em harmonia e concórdia, como as ovelhas que pastoreiam. O valor do homem só pode ser reconhecido na sua atividade de preencher o “vazio da criação” que é ele mesmo, puro devir, pura potência, mas plenamente nada. A inveja, a cobiça, o desejo de dominação, os seus vícios resultam, na temporalidade, em virtudes públicas futuras, em processo de Esclarecimento, em

consciência do dever-ser do homem e, consequentemente, na justificação da convocação da razão para a atividade incessante, para o trabalho e afadiga, para a renúncia à preguiça, para o esforço de realizar o que a natureza destinou aos homens: um mundo melhor, esclarecido, moralizado, de paz.

Creio que aqui se enuncia um mecanismo que é geral à filosofia da história do Esclarecimento e que teve vida longa: uma vez desvendado o fio condutor que inconscientemente, e por vezes patologicamente, levou a história a progredir até o momento da enunciação de sua descoberta, a humanidade, agora consciente de sua natureza, toma posse do conhecimento inédito desse mecanismo que a faz mover-se ern direção a um futuro luminoso, bom, justo, belo. A concepção iluminista da natureza humana, ao conceber o ser do homem como um vazio a ser preenchido por ele próprio, obriga, por essa mesma definição, à mobilização das forças humanas para construir esse futuro vislumbrado pela razão, transformando a ação humana em atividade de sua fabricação. Dado que esse futuro belo contrasta tão intensamente com a malignidade do presente (a menoridade, a iniquidade, a guerra etc.), torna-se um dever ético racional e, portanto, um imperativo, trabalhar, até a fadiga, para acelerar a chegada desse futuro inscrito no tempo. A “preguiça”, a “indolência” e o “contentamento ocioso” representam a vitória do vazio, do homem sem valor, da indiferença em relação ao destino da espécie que deve ser ultrapassada pelo entusiasmo com a possibilidade racional do progresso. Trata-se de substituir a história irracional, patológica, inconsciente, sem valor e sem sentido, por outra nova, racional, ciente de si, que se dirige, conforme a razão, para a realização plena das faculdades humanas no télos que a razão pode, antecipadamente, postular.

Encerro esta última seção sugerindo que, também no âmbito reflexivo das filosofias da história, a experiência do progresso, no século XVIII associada à noção de um processo histórico circunscrito por um télos que lhe conferia o seu significado próprio, ganhará, em fins do século seguinte, uma espécie de autonomia em relação à finalidade da história, uma força própria de movimento que se realiza independentemente de quaisquer resultados éticos substantivos. Se em Kant, como para boa parte do Iluminismo, do hegelianismo, do marxismo e do positivismo comteano, a expectativa do progresso da razão implicava a concordância entre progresso tecnológico e progresso moral, em fins do século XIX essa suposta unidade entre natureza e cultura estará, praticamente, anulada, e a evolução torna-se um processo em si, autônomo em relação a quaisquer fins morais[32].

***

O percurso cumprido até aqui buscou mostrar como, em campos diversos da vida social, a recusa da preguiça e do ócio foi elemento constitutivo da formação da experiência moderna. A crítica e a repressão violenta da vadiagem no contexto da acumulação primitiva de capital, a condenação da preguiça associada à glorificação do trabalho na ética protestante e o moderno conceito de progresso enunciado pelas filosofias da história do século XVIII num contexto de finalismo moral são exemplos disso. Parece-me razoável afirmar que as motivações originais desses processos históricos deixaram de fazer sentido: a violência que obrigou ao trabalho regular industrial e disciplinado pelo horário do relógio tornou-se desnecessária, mas a forma de organização do tempo e do trabalho dela derivada colonizou o conjunto da vida social moderna; a justificativa religiosa do engrandecimento da obra de Deus na terra dos homens perdeu sua potência, mas a ideologia do trabalho constante e sem descanso em busca do enriquecimento permaneceu ativa e funcional ao capitalismo moderno; e o finalismo moral das filosofias da história desapareceu há décadas, mas alguma versão do dever de progresso parece prosseguir existindo em setores da experiência social, com frequência reduzida à perspectiva do aumento de produtividade. Perdidos os seus sentidos tradicionais de ordenar o mundo em revolucionamento no início da modernidade, parece que persistem como puros processos, autônomos e independentes.

Notas

  1. Meus argumentos acerca da modernidade do conceito de progresso encontram suas referências principais em Reinhart Koselleck e Chistian Meyer, Progresso, Veneza: Marsilio, 1991; e R. Koselleck. “Progress’ and ‘decline’: an appendix to the history of two concepts”, in R. Koselleck, The practice of conceptual history: Timing history, spacing concepts, Stanford: Stanford University Press, 2002, pp. 208-235. 
  2. Em 1920, o historiador irlandês John H. Bury propôs uma definição da “ideia de progresso” que se tornou referência obrigatória para a discussão sobre o tema. Ainda que se possa duvidar da sua afirmação de que não havia qualquer noção de progresso antes da modernidade, o que aqui caracterizo COMO conceito moderno pode ser compreendido a partir dos termos da definição de Bury: ‘A ideia de Progresso humano é então uma teoria que envolve uma síntese do passado e uma profecia do futuro. Ela está baseada numa interpretação da história que concebe o homem como avançando vagarosamente — pedetemtim progredientes — numa direção definida e desejável, e infere que esse progresso continuará indefinidamente. E ela implica que, como uma condição de felicidade geral será finalmente gozada, esta justificará todo o processo da civilização; pois, de outro modo, a direção não seria desejável. Há ainda outra implicação. O processo deve ser o resultado necessário da natureza psíquica e social do homem; ele não deve estar à mercê de qualquer vontade externa; de outro modo não haveria garantia de sua continuidade e de seu provimento, e a ideia de Progresso deslizaria para a ideia de Providência”. (John H. Bury, The idea of progress: An inquiry into its origins and growth, Nova York: Cosimo Books, 2008, pp. 6-7.) 
  3. A tese que criticou a concepção de Bury para afirmar a existência de uma noção de progresso na Antiguidade foi defendida, inicialmente, pelo historiador Ludwig Edelstein na obra inacabada The idea of progress in Classical Antiquity, Baltimore: Johns Hopkins Press, 1967. 
  4. Ver Walter Burckert,”Impact and limits of the idea of progress in Antiquity”, in J. Mittelstrass, P. McLaughlin e A. Burgen (eds.), The idea of progress, Berlim /Nova York: Walter de Gruyter, 1997, esp. P.34. 
  5. Ver Alistair Crombie, “Philosophical commitments and scientific progress”, in J. Mittelstrass, McLaughlin e A. Burgen (eds.), op. cit., pp. 5354. 
  6. Theodor E. Mommsen, “St. Augustine and the Christian idea of progress: the background of the city of God”, in T. Mommsen, Medieval and Renaissance studies, Ithaca: Cornell University Press, 1959, pp. 265-298. 
  7. Ver Alistair Crombie, op. cit. , pp. 57-58. 
  8. Ver R. Koselleck, “‘Progress’ and decline’…”, op. cit., p. 226. Blaise Pascal, Fragment de preface pour Le traité du vide. http://fr.wikisource.org/wiki/Fragment_de_pr%C3%A9face_pour_le_trait%C3%A9_du_vide, 22/02/2011. 
  9. Nesta seção recorro a uma literatura já clássica sobre o período, em particular aos famosos capítulos históricos de O capital de Karl Marx, especialmente “Manufatura e grande indústria” e “A assim chamada acumulação primitiva de capital” (Karl Marx, O capital: crítica da economia política, vol. I, t. 2, São Paulo: Abril Cultural, 1984) e à obra do historiador inglês E. P. Thompson sobre a formação da classe trabalhadora inglesa (Edward P. Thompson, The making of the English working class. Harmondsworth: Penguin Books, 1982; e E. P. Thompson, “Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial”, in Costumes em comum, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 267-304). De modo secundário, estão presentes referências ao belo livro de Friedrich Engels sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Lisboa: Presença, 1975) e à obra de Karl Polanyi, A grande transformação (Rio de Janeiro: Campus, 1980), além das reflexões do filósofo francês Michel Foucault sobre a sociedade disciplinar em A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: Poe-Rio, 1973. 
  10. Karl Marx, op. cit., p. 277. 
  11. Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 4748. 
  12. Os exemplos a seguir foram retirados de Edward P. Thompson, “Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial”, op. cit., pp. 269-270. 
  13. Idem, ibidem., p. 272. 
  14. Citado por Max Weber, op. cit., pp. 42-43. 
  15. Karl Marx, op. cit., p. 275. 
  16. Idem, ibidem, pp. 275-76. 
  17. Aqui a referência obrigatória é a extraordinária obra de Max Weber sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo, op. cit., além dos textos já referidos de E. P. Thompson. 
  18. Max Weber, op. cit., pp. 52-53. 
  19. Citado por Edward P. Thompson, op. cit. 
  20. Max Weber, op. cit., pp. 104-105. 
  21. Idem, ibid em, pp. 102-103. Dado que esta e a próxima passagem citada funcionam, no contexto do meu argumento, como relato das fontes primárias, optei por transcrevê-las mais longamente para melhor reter os termos compilados pelo autor nas fontes teológicas. 
  22. Idem, ibidem, pp. 143-144. 
  23. Citado parcialmente em Thompson, “Tempo…”, op. cit., p. 296. Tradução modificada por mim. O original inglês diz: “Soft slumbers now mine eyes forsake, / My powers are all renew’d; / May my freed spirit too awake,! With heavenly strength endued! / / Thou silent murderer, Sloth, no more/ My mind imprison’d keep;! Nor let me waste another hour/ With thee, thou felon Sleep” (Hannah More, The works of Hannah More, vol. IIPoems, Tragedies, Londres: T. Cadell, Strand, 1930, pp. 4243). 
  24. Dados os limites do presente texto, restrinjo-me à reflexão de Immanuel Kant sobre a história. Em particular, refiro-me aos textos “Resposta à pergunta: Que é o Esclarecimento?” (in Textos seletos, 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1985) e Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (São Paulo: Bra-siliense, 1986), nos quais a noção de Progresso, enunciada no singular coletivo, ganha a sua formulação fundamental que viria a ser desdobrada na segunda parte de O conflito das faculdades. 
  25. A pergunta direta — que é Esclarecimento? — havia sido proposta em artigo publicado na mesma revista, Berlinische Monatsschrift, em dezembro do ano anterior, pelo teólogo e professor Johann Friedrich Zöllner, sobre a desejabilidade dos casamentos civis ou, para citar o autor, se era “conveniente sancionar ulteriormente o vínculo conjugal através da religião?”. O tema de Zöllner, como, aliás, de boa parte da ilustração alemã, e não só alemã, explorava as relações entre autonomia da razão e autoridade civil e eclesiástica, e se encontrava no coração da polêmica acerca da liberdade religiosa sob o governo de Frederico II. Como parte da discussão se fazia sob a égide do recurso ao termo Esclarecimento (Aufkleirung), a necessidade de defini-lo era, segundo Zöllner, uma exigência para que corações e mentes não permanecessem na confusão. A pergunta se difundia naquele contexto. No mesmo mês de dezembro de 1783, o médico de Frederico ii, Johann Carl Wilhelm Mõhsen, ele também membro da Sociedade da Quarta-Feira (Mittwochsgesellchaft) a que pertencia o pregador Zöllner, apresentou um trabalho programático estabelecendo um conjunto de tarefas para os amigos do Esclarecimento, e a primeira delas era justamente buscar uma definição para o termo em crescente uso e difusão. 
  26. Immanuel Kant, “Resposta à pergunta: que é o Esclarecimento?”, op. cit., p. 100. Grifo meu. 
  27. Idem, ibidem, pp. 108-109. 
  28. Idem, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, op. cit., p. 12. 
  29. Idem, ibidem. 
  30. O termo “fio condutor” é central à reflexão iluminista sobre a história e aparece seguidamente ao longo de todo o texto de Kant. 
  31. Immanuel Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, op. cit., pp. 13-14. 
  32. Para nos referirmos a um exemplo notório, a nova perspectiva da evolução natural formulada pelo darvvinismo abrirá mão do conceito de progresso em direção a algo tido como desejável, para afirmar uma concepção de tempo e de história como mera sucessão, aberta e interminável, sem qualquer significado. Ver, a esse respeito, a sugestão de Alistair Crombie, op. cit., pp. 61-62. 

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