1987

Platão: as várias faces do amor

por José Américo Motta Pessanha

Resumo

Em Platão, amor e fala, amor e discurso, amor e palavra estão intrinsecamente ligados.  O que Platão diz sobre a palavra “amor” (érôs)?

No diálogo Crátilo, Sócrates, personagem e porta-voz de Platão, discute com Hermógenes sobre a etimologia de dezenas de palavras. Através de Sócrates, Platão investiga a etimologia de érôs. Faz então, uma aproximação entre “amor” e “herói”. Sócrates esclarece que no idioma ático herói deriva de amor (érôs) pois os heróis nasceram do amor de um deus por uma mortal ou de uma deusa por um mortal. Os heróis descritos por Sócrates/Platão são hábeis no questionar (érotan) e no falar (eiren). A ligação platônica entre amor e fala, entre Logos e Eros está feita.

Ao longo de sua obra, Platão apresenta e hierarquiza os diferentes discursos sobre o amor. Quando fala sobre o amor no Lísis, no Banquete  e no Fedro o amor é o objeto mas subentende-o também no ato mesmo do falar: do falar do perfeito amante.

No Lísis, diálogo platônico, o binômio político livre/escravo é utilizado para demonstrar uma das formas do amor. O amor alcançado em decorrência da aquisição de uma habilidade, de uma mestria, de uma techné. A tese platônica é a de que ao amor passional, escravizante, avassalador, contrapõe-se outro tipo de amor,  o amor baseado no aprendizado, no saber. O amor que liberta.

No Banquete, Platão reúne grande variedade de recursos e estilos literários revelando as diversas faces e falas do amor. A concepção platônica do amor no Banquete começa com a moderação dos discursos sóbrios para encerrar na selvageria do amor/paixão de Alcebíades. O discurso ébrio de Alcebíades não aceita o convite à conversão socrático-platônica do erotismo na philia.

Um dos mais belos diálogos de Platão, o Fedro retoma o tema do amor e contém dois epílogos para as peripécias amorosas entre os homens. Dois epílogos correspondentes a dois dramas: um aparente, outro interior. Dois eixos de construção da experiência amorosa.

O primeiro é o do amor submetido à ordem e à medida. O amante, em vez de tentar escravizar o amado, procura libertá-lo filosoficamente, para que ambos se dirijam ao amor à sabedoria, que os alimentará. O objeto de amor, o amado, acaba tornando-se também sujeito de amor, amante.

O segundo epílogo é o do amor sem domínio de si,  amor dominador onde não entra a ponderação, a medida da filosofia. É o amor de duas almas desmesuradas, entregues à avassaladora paixão.

Socrátes e Fedro terão que fazer outras caminhadas. O tema do amor é inesgotável.


Falar do amor em Platão cria uma inevitável circularidade. Dela não podemos fugir: o próprio Platão não nos deixa escapar. É que, em Platão, amor e fala, amor e discurso, amor e palavra estão intrínseca e definitivamente interligados. Há, para Platão, cumplicidade entre Logos e Eros. Para sermos mais corretos: existe estreita vinculação entre as diversas formas de amor — múltiplas figurações de Eros — e as respectivas linguagens que falam do amor e com que o amor se fala. Os discursos amorosos retratam as várias faces de Eros.

Mais: para Platão, como se vê no Banquete, tema do amor vem de muito longe, sua origem se perde em insondáveis tempos remotíssimos, jamais presenciamos seu começo. O que dele temos, na verdade, é a série descontínua de falas ou variações na qual entramos sempre tardiamente: sequência fragmentada de múltiplos e heterogêneos discursos, esfacelada por falhas, hiatos, silêncios. Nunca um discurso inteiro e contínuo — mas retalhos dispersos, discursos díspares e descosidos. Nunca um mesmo e único discurso: falta-lhe começo como lhe falta continuidade. Se o tema provém de eras recuadas, o que obtemos ao tentar resgatar seu passado e recontar sua história são sempre lembranças partidas e incompletas: a memória surge entremeada de esquecimentos. Por outro lado, como sugere o Fedro, o amor é tema que não se encerra nem se exaure: apesar de permanentemente retomado, permanece inconcluso, aberto sempre à possibilidade de novas variações. Eis porque — sem a apreensão de seu início, sem a visualização de seu final — do tema do amor temos somente o meio, seu dilacerado meio onde estamos e somos: os inúmeros e às vezes antagônicos discursos amorosos, onde fatalmente tentamos inserir nossa fala particular e provisória.

* * *

Mas falar do amor em Platão exige algumas considerações preliminares:

A primeira diz respeito ao significado geral da filosofia de Platão. Nenhum filósofo exerceu e exerce maior influência na cultura ocidental. Mas nenhum foi também tão mal interpretado e tão caricaturado. É que a estrutura mesma de sua obra possibilita diferentes leituras, algumas parciais e deformantes. Não tendo escrito tratados expositivos, mas diálogos, Platão apresenta o filosofar como, fundamentalmente, combate e jogo — jogo sério, ele mesmo adverte — entre diferentes opiniões em confronto. E, embora suas teses possam ser geralmente identificadas com as colocações feitas por Sócrates — ao mesmo tempo personagem e porta-voz —, o método de investigação das questões ultrapassa e condiciona as doutrinas que reciprocamente medem suas forças. A dialética platônica, apesar das mutações que apresenta, permanece basicamente uma justa filosófica: disputa na qual o prêmio da verdade está prometido — promessa cujo cumprimento é continuamente adiado — ao vencedor de árduas competições argumentativas. Ainda: no decorrer dessas lutas, como as travadas entre Sócrates e a sofística, Platão reformula suas posições. Desenvolve, assim, simultaneamente, uma dialética interior às próprias doutrinas: dialética construtiva e retificadora que altera, aprofunda ou corrige suas hipóteses. Platão parece considerar o exercício do filosofar mais importante que as provisórias consequências desse exercício; o método, mais importante que os conteúdos doutrinários. A forma dialogada de sua obra não seria, portanto, mero artifício didático ou literário: reflete e desvela a construção dialética de um pensamento aberto e litigante, em permanente combate com adversários e consigo mesmo, no esforço de desfazer ilusões e enganos exteriores e interiores. Mas a estrutura dialogada de obras que são verdadeiros dramas filosóficos fatalmente tem como consequência tornar o público — leitor ou auditor — um dos participantes do debate, mais um protagonista do confronto entre consciências e entre opiniões.[1] O que torna difícil o distanciamento, o que facilita a tomada de posição pró ou contra as teses apresentadas — mas o que também induz à interpretação parcial e “interessada”.

Esses fatores já são suficientes para tornar difícil a apreensão do que seria a filosofia de Platão. E há mesmo quem afirme não existir propriamente uma filosofia em Platão — embora dinâmica e mutável —, antes uma construção multifacetada, assistemática, plural, constituída por sucessivas tentativas, sucessivos “ensaios” (vários aporéticos ou inconclusos), tamanha a inquietação desse filosofar que incessantemente rediscute problemas, multiplicando níveis e perspectivas de abordagem, apontando os inúmeros caminhos que se oferecem à aventura do pensamento. De fato, mesmo que o filosofar, para Platão, não seja apenas o mapeamento dos diferentes itinerários intelectuais possíveis — o que afinal faria do platonismo uma forma requintada de relativismo e daria aos sofistas a palma da vitória —, ele é também, sempre, a busca de uma rota que revela sua excelência e seu direcionamento à verdade pela própria capacidade de derrotar e corrigir as demais, como uma reta que se vai aos poucos construindo pela retificação das curvaturas da ilusão. O que torna indesligável o liame entre verdade e erro, ciência e ficção, mesmo e outro, ser e não ser. E o que faz de Sócrates/Platão o reverso do sofista: o avesso que é o direito.

Além disso — e certamente também por tudo isso —, Platão utiliza variados recursos de linguagem: diálogos propriamente, discursos, demonstrações de índole matemática, mitos, alegorias etc. Parece mostrar que a linguagem filosófica é necessariamente vária, inevitavelmente múltipla. E que a filosofia precisa empregar diversas linguagens para poder tratar adequadamente os diferentes objetos, respeitando a peculiaridade de cada um. A imagem da linha dividida, no final do livro da República, mostra que a cada tipo de objeto corresponde uma forma de conhecimento; mas é necessário acrescentar que a cada tipo de objeto e de conhecimento corresponde uma forma de linguagem. Eis por que a prosa belíssima e riquíssima de Platão incorpora com frequência elementos poéticos, sempre que a poesia se torna imprescindível e desde que a serviço da busca da verdade, não da simples encantação e do ilusionismo. Por isso, artista, Platão critica duramente os artistas; poeta, critica Homero e os poetas que realizam “prestígios”: uma certa arte imitativa e fascinante que é a sofística na arte.[2] Para ajustar a linguagem a determinados objetos de investigação ou para tornar didaticamente acessíveis certos temas, Platão recorre com frequência a metáforas, magníficas metáforas. Imagens e analogias não são, porém, acessórios ou ornatos literários: possuem funcionalidade e constituem uma forma de pensamento. Não pensamento rigoroso e exaustivo, mas pensamento alusivo, analógico, que se move nos domínios do razoável e do plausível, exigido pela natureza não inteiramente inteligível do objeto em questão. Essa ampliação do âmbito da razão e essa instauração de um plano intermediário entre verdade e falsidade — revolução realizada por Platão nas premissas do eleatismo — abrem espaço para a hierarquização dos diferentes tipos de opinião, permitem a conquista progressiva da verdade e tornam possível falar-se até em “opinião verdadeira” (Teeteto, 187b). E é o que torna flexível e pluriforme o logos platônico, aumentando o território do discurso iluminador e fazendo recuar a ameaça do impensável e do indizível. Todavia, se imagens e metáforas geralmente estão a serviço dessa tarefa de iluminação até certo ponto, constituem também um grande risco. São “perigosas metáforas”, como escreveu Léon Brunschvicg, pois podem ocasionar equivocadas e maliciosas traduções — traduções ao pé da letra, ao pé da imagem —, como ocorreu, desde Aristóteles, com a belíssima metáfora “céu das ideias”.

Por esses e outros motivos é difícil descobrir um único e verdadeiro significado para as doutrinas de Platão: há tantos platonismos quanto seus grandes intérpretes, de Aristóteles até nossos dias. Mas, se é assim do ponto de vista dos conteúdos doutrinários, é praticamente unânime o reconhecimento de que Platão redireciona o pensamento filosófico do ponto de vista metodológico. Ele propõe novo eixo para a construção científico-filosófica. Essa mudança constitui verdadeira conversão, que passa a determinar a índole de grande parte dos empreendimentos culturais do Ocidente: na filosofia, na ciência, na política, na religião, na arte, na ética etc. A partir de Platão, a viagem do pensamento geralmente adota novo roteiro. Aquele que Nietzsche recusará (cínicos e estoicos já haviam rejeitado e combatido na Antiguidade) e que Deleuze descreve com clareza:

A imagem do filósofo, tanto popular como científica, parece ter sido fixada pelo platonismo: um ser das ascensões que sai da caverna, eleva-se e se purifica na medida em que se eleva. Nesse “psiquismo ascensional”, a moral e a filosofia, o ideal ascético e a ideia do pensamento estabeleceram laços muito estreitos. Deles depende a imagem popular do filósofo nas nuvens, mas também a imagem científica segundo a qual o céu do filósofo é um céu inteligível que nos distrai menos da terra do que compreende sua lei. Mas nos dois casos tudo se passa em altitude (ainda que seja a altura da pessoa no céu da lei moral). Quando perguntamos “que é orientar-se no pensamento”, aparece que o pensamento pressupõe ele próprio eixos e orientações segundo as quais se desenvolve, que tem uma geografia antes de ter uma história, que traça dimensões antes de construir sistemas. A altura é o Oriente propriamente platônico. A operação do filósofo é então determinada como ascensão, como conversão, isto é, como movimento de se voltar para o princípio do alto, do qual ele procede, e de se determinar, de se preencher e de se conhecer graças a uma tal determinação.[3]

Discutir amplamente essa conversão seria inevitavelmente discutir todo o platonismo. Seria, inclusive, procurar razões que teriam levado Platão a propor a substituição do eixo construtor das explicações filosóficas, trocando o eixo horizontal–retroativo, típico do pensamento pré-socrático, pelo eixo ascensional, verticalizante. Aquele, afinal, é mítico antes de ser filosófico: fabula, conta uma história, descreve uma gênese — do universo, de todos os seres — a partir de um começo, um princípio-início, uma arké. Repete, nas cosmogonias pré-socráticas, o eixo da causalidade genética, feito de causas antecedentes, já expresso na Teogonia de Hesíodo sob a forma de genealogia. O segundo, o ascensional inaugurado por Platão, aparece no Fédon (97d-101b) em declarada contraposição à forma de pensar jônica representada por Anaxágoras de Clazômenas. Surge como uma “segunda excursão” à procura de outro tipo de causalidade (99d), capaz de justificar não apenas o que aí está, mas sobretudo o que “parece melhor”, “mais justo e mais belo” (99a), ou seja, capaz de justificar racionalmente não só o universo físico aí presente, de fato, mas também o universo ético e político: que deverá ser, de direito: o universo dos valores que subentende a finalidade. O eixo ascensional, estabelecido segundo o modelo do “método dos geômetras” (Mênon, 86e -87b), representa a superposição de hipóteses que se ligam pela relação condicionado/condicionante. É ele que conduz à afirmação de outro tipo de causa, outro tipo de arké: não mais arké como princípio-começo, arké ancestral, arké-arcaica, mas como princípio modelar, ideal, paradigmático, arké-arquetípica: a “ideia” ou forma, incorpórea e transcendente. Assim, desde a índole ascendente de sua construção, a dialética platônica revela-se uma metamatemática.

Mas é válido perguntar: por que essa mudança de eixo? Responder, embora simplificadamente, consistiria em examinar algumas razões que se conjugaram para suscitar tal mudança:

1) Razões religiosas — configuradas principalmente pela influência, sobre o pensamento platônico, da corrente órfico-pitagórica, com sua religião astral, que fazia das estrelas a pátria das almas e via na condição terrena dos homens apenas uma passagem purificadora, uma peregrinação de retorno através de várias reencarnações, rumo à Ítaca celeste: o regresso ao Alto.

2) Razões científicas — representadas sobretudo pela influência da vertente científica do pitagorismo, que fazia da matemática a via ascensional de salvação da alma e da pólis, o caminho de retorno ao reino da claridade, da proporção, da harmonia, da justeza e da justiça. No tempo de Platão, esse matematismo pitagórico desenvolvia-se principalmente em torno da questão dos “irracionais”: a incomensurabilidade ou inexistência de medida comum entre grandezas como a diagonal e o lado do quadrado. Escândalo para o pitagorismo primitivo, a questão dos irracionais adquire, na época de Platão, novo significado e impulsiona o avanço da matemática grega, exigindo a modificação da própria noção de número. Teodoro de Cirene, matemático e amigo de Platão, demonstra a irracionalidade das raízes quadradas de 3 até 17, revelando que, ao contrário do que antes se supunha, a irracionalidade não era uma escandalosa exceção, antes o fundo subjacente ao fluxo da quantidade, do qual emergem os números inteiros (únicos números para o pitagorismo primitivo, que os considerava as almas das coisas), como momentos privilegiados de nítida apreensão, de valoração exata. Até Platão, o irracional, o alogon, é concebido não só como o incomensurável, mas também como o inefável, o indizível. Uma das maiores contribuições de Platão à compreensão do problema — com profunda repercussão em seu próprio pensamento — está em mostrar, no Teeteto, que o irracional é, ao contrário, aquilo que somente pode ser nomeado, do qual temos apenas o símbolo, jamais a physis, a natureza, a essência, o que ele é exatamente. Em relação a ele temos apenas aproximações; dele apenas nos acercamos — por meio de cálculos por falta ou por excesso —, nunca o apreendemos em sua exatidão, em sua justa medida. Perseguido, seu valor parece fluir em direção ao infinito, refugiando-se no ápeiron, no ilimitado, e deixando um rastro de reticências — como quando queremos saber o valor da raiz de 2. Ele é como o limite[4] para o qual tendem nossas incessantes e sempre insuficientes aproximações; parece sempre transcender nossas múltiplas artimanhas de linguagem, nossos esforços para dizê-lo em si mesmo, direta e exaustivamente, permanecendo apenas refletido nas imprescindíveis e precárias tentativas desse dizer. Seu modo de transcendência sugere aquele que, segundo Platão, é o das ideias em relação aos objetos físicos e à própria linguagem.

3) Razões políticas — enfeixadas na necessidade de tomar distância, que Platão experimenta, em relação à prática política desenvolvida em Atenas, como ele próprio revela na Carta VII. Percebe as falhas dos diferentes regimes políticos existentes, percebe a fragilidade e as imperfeições da democracia ateniense — que, inclusive, matara o justo por excelência, Sócrates — e então refreia os impulsos juvenis de participação política, passando a desenvolver uma filosofia que ocupa o espaço da “ação entravada”.[5] Busca os fundamentos da política que seja não uma política qualquer, mas a política justa. Distanciando-se da ação imediata, passa a arquitetar um modelo político ideal, de bases metamatemáticas. O exemplo de Árquitas de Tarento — matemático pitagórico e governante — certamente lhe serve de inspiração. Mas a subida em direção ao modelo hipotético e o “não” às formas políticas imediatas não significam abandono ou desistência da ação. Suas reiteradas tentativas de participação na política de Siracusa o comprovam: não porque quisesse fazer de Siracusa a concretização da pólis ideal, mas principalmente porque sua ampla visão política mostrava a necessidade de se bloquear o avanço dos cartagineses na Sicília. O “distanciamento” da prática política representa, assim, a criação de um espaço teórico e crítico: a ascese, a partir do sensível imediato, rumo ao reino da inteligibilidade.

Ao lado dessas e de outras razões culturais, que teriam induzido Platão a inaugurar novo eixo metodológico, trocando a horizontalidade retroativa pela verticalidade, podem ser alinhadas outras explicações. Pode-se até, à luz das reflexões de Bachelard sobre os vários tipos de temperamentos filosóficos e artísticos, determinados pela predominância de certos ingredientes do imaginário material, reconhecer em Platão um temperamento fortemente marcado pelo ar, um psiquismo movido sobretudo pelo ímpeto ascensional, aeriforme.[6] Curioso é que isso integraria Platão numa família de imaginativos em que Bachelard coloca poetas como Shelley e o filósofo ferozmente antiplatônico Nietzsche.[7]

* * *

Uma segunda ordem de reflexões preliminares inevitavelmente diz respeito à questão do erotismo na concepção dos antigos gregos, dentro da qual deve ser situada a concepção platônica do amor. Essa ampla moldura cultural é admiravelmente traçada por Foucault, num de seus últimos e mais belos livros.[8] Mostra ele que, na Grécia Antiga, a questão dos prazeres — ta aphrodisia — desenvolve-se em torno de quatro grandes eixos: a Dietética (referente aos cuidados com o corpo), a Econômica (relativa ao casamento, à relação com a esposa), a Erótica (relativa ao amor aos rapazes), a Filosofia (relativa à verdade). Mais: a reflexão moral dos gregos sobre o comportamento sexual representa a estilização de uma atividade cujo exercício deve conjugar a prática de seu controle à prática de sua liberdade. Trata-se de um trabalho de estilização inserido numa estética da existência.

O autocontrole gira em torno do tema da austeridade, da continência. O que distingue os homens uns dos outros — para a medicina tanto quanto para a moral — não é tanto o tipo de objeto para o qual está orientado o desejo sexual ou o modo como a prática sexual é realizada: é antes a intensidade dessa prática. A diferença aparece em termos de moderação e incontinência; a imoralidade estaria no excesso e na passividade. Os gregos não opõem, como comportamentos excludentes ou radicalmente diferentes, o amor ao mesmo sexo e o amor ao sexo oposto. A oposição fundamental é a que coloca, de um lado, o homem temperante e senhor de si, de outro, o homem que é escravo dos prazeres (na relação com outro homem ou na relação com uma mulher). O núcleo da questão está no conceito de temperança, que subentende não apenas uma arte da medida — a metrética que Platão aplica também à ética, à estética da existência — como ainda o domínio de si, expresso no autogoverno, na autarquia: inerente à liberdade política tanto quanto à liberdade individual. É que na questão ética do “uso dos prazeres” entrecruzam-se, em Platão, paradigmas políticos, médicos, matemáticos.

Por outro lado, a estilização do comportamento sexual, a estetização do desejo, manifesta-se também na escolha de seu objeto. Este deve ser o mais belo e o mais nobre, independentemente de ser ou não do mesmo sexo. Por isso é que vemos em Platão a passagem do amor aos rapazes (Erótica) ao amor à verdade (Filosofia). O mais belo e mais nobre objeto de amor é encontrado desde que os termos iniciais da relação erótica — homem/rapaz, amante/amado, erasta/erômeno — vão sendo substituídos, numa ascese erótica progressiva, até se transformar afinal na relação entre sujeito (amante) e objeto (amado) de contemplação. Ao longo dessa transformação, o vínculo erótico entre as pessoas é transmutado em relação de amizade: Philia substitui Eros. É que a relação amante/amado passa a se sustentar na relação mais forte, de cada um, com a verdade: a philia alimenta-se sobretudo na filosofia. Eis porque, mostra Foucault (p. 213), nos diálogos de Platão acompanha-se a passagem da erótica modelada sobre a prática da corte à erótica que gira em torno da ascese do sujeito à verdade. Essa passagem exige a mudança dos temas das conversações sobre o amor. Para se saber o que é o verdadeiro amor, vão sendo abandonadas questões como: quem convém amar? em que condições o amor é honroso para o amado e para o amante? Tais indagações vão sendo subordinadas à questão fundamental: o que é o amor em si, qual a essência do amor? A troca de perguntas a respeito do amor — passando do plano das relações afetivas entre pessoas para o plano da relação afetivo-intelectual entre sujeitos e verdade — revela a troca do eixo da causalidade horizontal pelo da causalidade vertical: a conversão platônica rumo ao alto, ao “mundo das ideias”. É o que se pode verificar nos três diálogos que Platão dedica ao amor: Lísis, Banquete e Fedro.[9]

Mas, antes de irmos ao encontro desses diálogos, é proveitoso verificar o que o próprio Platão diz sobre a palavra “amor” (érôs). No Crátilo, na parte em que Sócrates discute com Hermógenes a tese de que os nomes seriam simples obra de convenção e acordo, abre-se um longo exercício que procura estabelecer a etimologia de dezenas de palavras: nomes de deuses, astros, fenômenos naturais, noções morais, nomes derivados e nomes primitivos. É bem verdade que, durante todo esse exercício, Sócrates parece “inspirado”: levado não pelo rigor do raciocínio, antes realizando especulações engenhosas, algumas tão livres que parecem fantasias. O próprio Sócrates reconhece isso e atribui esse seu comportamento — de quem parece “mais sábio que a razão” (399) — ao fato de ter conversado longamente, naquele mesmo dia, com Eutífron, fanático religioso que se apresentava como adivinho. E é como quem se entrega a um jogo de palavras e adivinhações que Sócrates procura a etimologia das palavras: artimanha usada por Platão para, desde aí, sugerir que a verdade — mesmo a verdade sobre as palavras — não pode ser dada pela linguística, só sendo alcançada pela dialética.[10] De qualquer modo, porém, as etimologias apresentadas por Sócrates/Platão nesses exercícios têm grande interesse, inclusive porque iluminam certos conceitos com uma luz às vezes insegura, mas platônica. É o que ocorre com a etimologia de érôs. Através de Sócrates, Platão investiga a etimologia de daimon (demônio, gênio), e depois a de érôs. Faz então uma insuspeitada aproximação: entre “amor” e “herói”. Mostra que, de fato, todos os heróis são seres híbridos de mortalidade/imortalidade, pois “são nascidos do amor de um deus por uma mortal ou de um mortal por uma deusa’’ (398d). E acrescenta: “à luz da antiga língua ática, esse nome (herói) revela-se derivado de ‘amor’ (érôs), ao qual os heróis deveram seu nascimento”. Em seguida, esclarece: os heróis “eram sábios, oradores eloquentes e bons dialetas, sendo hábeis no questionar (érôtan), no falar (eirein), porque eirein é sinônimo de légéin (dizer)”. Finalmente: sendo os heróis oradores e hábeis questionadores, “a raça heroica tornou-se um tipo de retóricos e de sofistas” (398d-e).

A etimologia “inspirada” de Sócrates permite, assim, estabelecer uma subterrânea ligação entre amor e fala. Permite ainda reconhecer a existência de um heroísmo que se revela pela palavra. Mas, no fundo, a raiz desse heroísmo é o amor, pois o herói é, ele mesmo, obra de Eros. Por dentro de “eros” e de “herói” passa o significado de falar, questionar, dizer. Por isso, Logos e Eros são inseparáveis. Por isso, também, é que em todos os seus tipos e níveis o amor é falante, discursante. E justamente o que Platão faz em sua obra é apresentar e hierarquizar os diferentes discursos do amor. Procura, desse modo, traçar o perfil daquele que é, ao mesmo tempo, o grande herói e o grande amante, o amante ideal: Sócrates, que desenvolve através da fala o heroico tema da docência erótica e do erotismo docente e libertador. Assim, quando fala sobre o amor — no Lísis, no Banquete, no Fedro —, esse discurso tem o amor como objeto, mas subentende-o também no ato mesmo do falar: do falar do perfeito amante. Pois “o perfeito amante (erotikós) é o verdadeiro filósofo”.[11]

A etimologia de “eros” é enriquecida no Fedro (252b). Sócrates aí distingue duas etimologias de “eros”, correspondentes a dois de seus aspectos: para os homens, o amor é éros — é simplesmente “alado”; para os deuses, porém, ele é ptérôs, isto é, “alante”, doador de asas. Para Platão, como mostra Joly, é este último sentido que é o sentido filosófico de Eros. Escreve: “O amor platônico é, com efeito, o amor mitológico, mas filosoficamente revisto e corrigido. […] Ele é menos o que voa do que o que faz voar”.[12] Falante e alante, o amor é impulso ascensional, do sentimento e da fala. Conduz do condicionado ao condicionante, do corpóreo ao incorpóreo. Tende ao absoluto: (re)conduz a alma do contingente e do efêmero ao essencial e ao eterno.

O Lísis é um belíssimo diálogo que os historiadores geralmente situam no final da série dos diálogos platônicos chamados “socráticos” ou “da juventude”. Nele, Sócrates conversa com alguns jovens sobre o amor. É que um deles (Hipótales) está apaixonado por um garoto (Lísis) e não consegue esconder isso de Sócrates, que se dispõe a mostrar o que se deve fazer para obter o amor do amado. A questão do amor é colocada, assim, de início, no nível da discussão sobre a melhor forma de se fazer a corte, sobre o melhor modo do caçador conseguir aprisionar sua caça (206b). A questão logo muda de rumo quando Sócrates passa a dialogar com Lísis, que se juntara ao grupo em torno do filósofo. À candura de Lísis. Sócrates aplica delicadamente sua maiêutica, sua sedução docente. Começa por perguntar a Lísis se seus pais, que o amam muito, permitem que ele faça tudo o que deseja. Lísis naturalmente diz que não: muitas coisas que gostaria de fazer lhe estão proibidas, como dirigir nas corridas os carros puxados por cavalos. E, no entanto, tais coisas podem ser feitas por mercenários ou escravos. Coloca-se, assim, um aparente paradoxo: Lísis, futuro cidadão de Atenas, com todo o direito à liberdade, não é livre para fazer o que faz um escravo. Nem pode se governar a si mesmo, sendo comandado por um pedagogo, escravo também (208c). Vive, de fato, em regime de subordinação aos pais, ao pedagogo, aos mestres. Mas Lísis sabe que é uma questão de tempo: dócil, consente naquela subordinação, compreendendo que, quando tiver idade bastante e tiver aprendido como fazer as coisas, terá liberdade para fazê-las. Sócrates, com hábeis perguntas, leva Lísis a reconhecer que há necessidade de uma preparação para o exercício de determinadas atividades ou funções. Mas chegará o momento em que estará afinal preparado até para os afazeres que lhe forem confiados pela pólis e pelos concidadãos (209d). Pois é necessário tornar-se mestre, desenvolver uma habilidade, um virtuosismo, uma techné; essa a condição para se tomar livre de fato e de direito e comandar os outros (210b). E Sócrates mostra mais: “tornando-nos sábios, seremos amados”, pois, sábios, somos úteis e bons (210d).

A utilização do paradigma político e do binômio livre/escravo conduz ao reconhecimento de outra forma de se alcançar o amor: o amor que se recebe em decorrência de uma habilidade, de uma mestria — a mesma mestria que permite o exercício pleno da liberdade. No Lísis já encontramos, portanto, a formulação da tese platônica de que ao amor passional, escravizante, avassalador, contrapõe-se outro tipo de amor: aquele baseado no aprendizado, no saber. E que liberta.

Em seu prosseguimento, o diálogo aborda outras questões relativas ao amor, como: o semelhante é que é amigo do semelhante? Ou os seres opostos é que são amigos? (213d, 215e). Discutem-se teses atribuídas direta ou indiretamente a poetas, como Homero, e a sábios, como Empédocles, Anaxágoras, Heráclito, mostrando Sócrates as insuficiências de todas elas. Até que, na tentativa de superar essas insuficiências, ele, “cedendo a uma espécie de adivinhação”, faz uma conjectura (216d): há três gêneros — o bom, o mau e o que não é bom nem mau (como o corpo). E propõe a conclusão: o que não é bom nem mau torna-se amigo do bom pela presença do mau, como o doente ama a medicina por causa da doença e em função da saúde que deseja (217b-c). Sócrates confessa sentir-se aqui “como o caçador que enfim pegou a caça que perseguia” (218c), numa caçada, é claro, bem diversa daquela inicialmente referida em sua conversa com o apaixonado Hipótales. É que agora a caçada dirige-se para o alto, abandonando as vicissitudes e as artimanhas sensíveis de corte e sedução entre erasta e erômeno. Essa ascese, por não ter ainda estabelecido rigorosamente seu método (o “método dos geômetras”, que somente será explicitado no Mênon e no Fédon), pode parecer apenas “um belo sonho” e correr o risco de ser arrastada por raciocínios enganadores (218c). Mas mesmo assim Sócrates ousa propor a conversão ascensional. Havia reconhecido que a medicina é amada em vista da saúde. Pergunta então: e a saúde é amada em vista de quê? Naturalmente, em vista de outro objeto amado. E conclui:

Então chegar-se-á fatalmente ou que deixaremos de seguir nessa via, ou que chegaremos a um princípio que não nos remeterá mais a outro objeto amado, quero dizer a esse objeto que é o primeiro objeto de amor, em vista do qual dizemos que todos os outros são amados (219c-d).

Se o que se ama é sempre um bem para quem o ama, de bem em bem chega-se afinal ao bem incondicionado. Por isso, Sócrates acrescenta: “é esse primeiro objeto que é verdadeiro amigo” (219e), pois “é o bem que é amado” (220b).

Mas a rapidez com que se chegou a esse ápice deixa irrespondida uma série de dúvidas, como: “ama-se o bem por causa do mal?” (220d), ou “se o mal acabasse, cessariam os desejos?” (221b). Responder a essas perguntas pressupõe a resolução de problemas que Platão só enfrentará decisivamente em diálogos posteriores, problemas que ultrapassam a esfera ético-afetiva e se enraízam no território metafísico ou, melhor, metamatemático. Por enquanto, no Lísis, ficam apenas algumas rápidas indicações: sobre a positividade inerente ao desejo (a fome é tanto nociva quanto útil, nela experimenta-se dor e prazer); sobre a permanência da amizade mesmo quando o mal desaparece; sobre a amizade causada pelo desejo (221d); sobre o desejo pressupondo uma conveniência — não uma semelhança — de alma, de caráter, de costumes, de exterior, o que possibilita a reciprocidade entre amante e amado (222a-c).

Mas a conversação é interrompida pela chegada dos pedagogos que vêm buscar Lísis e seu amigo Menexeno. O tema do amor permanece inconcluso, aberto. O Banquete o retomará.

O Banquete é, indiscutivelmente, uma obra-prima da literatura e da filosofia de todos os tempos. De saída, merece atenção a forma como a situação dramática é construída e como o tema do amor é introduzido. Em seu conjunto, o diálogo se apresenta como um relato feito por Apolodoro a um companheiro; este pede a Apolodoro que reproduza os discursos sobre o amor pronunciados num banquete na casa de Agatão. Apolodoro o que faz é repetir ao companheiro o que antes já havia contado a outra pessoa, Glauco, que lhe fizera pedido semelhante. Mas o que contara a Glauco e o que repete ao companheiro não foi por ele presenciado; ocorrera há muito tempo e lhe fora narrado por Aristodemo, que, este sim, assistira à reunião. Por isso é que, antes de tentar reproduzir os discursos proferidos no banquete da casa de Agatão, Apolodoro, prudentemente, previne que “foram eles em verdade mais ou menos assim…” (174a). Mais adiante, depois de reproduzir o que teria sido o discurso de Fedro sobre o amor, Apolodoro esclarece: “De Fedro foi mais ou menos este o discurso que pronunciou, no dizer de Aristodemo; depois de Fedro houve alguns outros de que ele não se lembrava bem, os quais deixou de lado, passando a contar o de Pausânias” (180c). Finalmente, quando mais adiante chegar a vez de Sócrates fazer seu discurso, é ele mesmo, Sócrates, que provoca novo e decisivo recuo: reporta-se a um discurso bem mais antigo e de misteriosas origens — o discurso de Diotima de Mantineia, que teria escutado há tempos e que reproduz e endossa.

Percebe-se, assim, que a doutrina socrático-platônica sobre o amor emerge do texto do Banquete como aquilo que pôde ser resgatado de uma longa cadeia de memórias e esquecimentos, no meio de uma série de discursos heterogêneos, provenientes de várias épocas e entremeados de lacunas. Mais: o que se tem são sempre discursos que se referem a discursos e são mediadores de outros discursos. Ou seja: o tema do amor existe na intermediação dos discursos, no campo plural da fala, da interlocução sustentada pela memória, mas marcada inevitavelmente pela incerteza e pelas omissões do esquecimento. Um discurso remete a outro, que remete a outro, que remete a outro… numa sequência fragmentada de inúmeras mediatizações, a partir de um inalcançável ponto inicial que, como a physis do irracional matemático, recua indefinidamente.

Por outro lado, é também importante verificar que, do ponto de vista literário — mas com decisivas implicações filosóficas —, o texto do Banquete abriga grande variedade de recursos: diálogos, discursos, mitos, citações de poetas, provérbios, múltiplos estilos (as imitações ou pastiches dos diferentes estilos dos discursantes, a revelar diferentes psicologias ou mentalidades: uma das mais extraordinárias realizações do Platão filósofo-dramaturgo). E pode-se indagar: tudo isso não é mesmo indispensável para se falar do amor? O amor não exige ser dito com todos os recursos da linguagem, ele que, segundo o Crátilo, está intrínseca e subterraneamente ligado a todo falar, a todo dizer, a todo questionar? Do amor, afinal, o que podemos ter não são as muitas faces, as muitas falas?

O banquete reproduzido por Apolodoro, com base no relato de Aristodemo e em confirmações de Sócrates (173b), aconteceu no dia seguinte ao da vitória de Agatão num concurso literário. Sócrates se dirigiu à comemoração acompanhado por Aristodemo. Estava “banhado e calçado com as sandálias” e, ao encontrá-lo, Aristodemo pergunta “aonde ia assim tão bonito” (174a). Eis aí um Sócrates limpo, asseado, até bonito, certamente porque preparado para a festa e porque, diz, quer “ir belo à casa de um belo” (174b); mas talvez também porque iria anunciar uma ascese apolínea, uma certa purificação, um certo afastamento do sensível e a superação do corpóreo: calçados de sandálias, seus pés já não tocam a terra.

Desde o caminho em direção à casa de Agatão, Sócrates está estranho: “Sócrates, então, como que ocupando o seu espírito consigo mesmo, caminhava atrasado e, como o outro se detivesse para aguardá-lo, ele lhe pede que avance” (174d). Esse ensimesmamento de Sócrates é um fenômeno que ocorre de vez em quando — e Platão o menciona em outros diálogos. Aqui, o ensimesmamento e o atrasar-se no caminho parecem indicar um duplo recuo indispensável à preparação do discurso que fará depois: é do fundo de si mesmo que jorrará uma sabedoria ancestral, voz de Diotima trazida no bojo de sua própria voz, enquanto o atrasar-se sugere a tomada de impulso de quem se prepara para saltar longe e alto em sua fala.

Após o jantar, na hora propriamente do simpósio — da bebida em conjunto acompanhada de divertimentos — surge a proposta de Erixímaco, que assume a função de simposiarca: que não se beba tanto — como se fizera na véspera — e que se dispense a flautista; em lugar do vinho e da música, que os presentes façam encômios a Eros (176e-177d). A embriaguez do vinho será substituída pela embriaguez ou pela moderação dos discursos; a música da flauta substituída por cantos de palavras. Se na véspera reinara Dioniso com sua desmesura, agora será a vez de Apolo, com suas claridades e sua medida.

Seguem-se então os discursos. Primeiro, Fedro.

Fedro apresenta Eros no contexto teogônico, à maneira de Hesíodo. Um Eros que é o mais antigo dos deuses, um grande deus sem genitores, que surge depois de Caos e juntamente com Terra (178b). Esse deus poderoso, também exaltado por Parmênides e Acusilau, está na raiz da geração de todos os seres e, no nível humano, é causa dos maiores bens. Explica Fedro: “Não sei eu, com efeito, dizer que haja maior bem para quem entra na mocidade do que um bom amante, e para um amante, do que o seu bem-amado” (178c). É que o amor leva “à vergonha do que é feio e ao apreço do que é belo” (178d). Por isso, o melhor exército seria aquele constituído por amantes e amados, pois, “quando lutassem um ao lado do outro, tais soldados venceriam, por poucos que fossem, por assim dizer todos os homens” (179a). Também, “quanto a morrer por outro, só o consentem os que amam, não apenas os homens, como também as mulheres” (179b), como mostram os exemplos de Alceste e de Aquiles. E conclui Fedro: “Assim, pois, afirmo que o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte” (180b).

Ao discurso de Fedro — depois daqueles de que Aristodemo não mais lembrava — seguiu-se o de Pausânias. De saída, o novo discurso sobre o Amor introduz uma divisão fundamental: não há um único tipo de Amor. O Amor está sempre ligado a Afrodite; como há duas Afrodites — a Urânia ou Celestial (filha de Urano) e a Pandêmia ou Popular (filha de Zeus e Dione) —, há também dois Amores, um Urânio ou Celestial, outro Popular ou Pandêmio. Essa distinção permite a introdução de critérios valorativos quanto ao amor. O Eros do tipo hesiódico, apresentado por Fedro, justificava, como princípio gerador da realidade toda, a existência factual dos seres, mas não legitimava os juízos de valor, a contraposição do bom e do mau, do belo e do feio, do certo e do errado. Já os dois Amores — de origens e naturezas diversas — podem fundamentar as oposições axiológicas. Agora é possível dizer: “o amar e o Amor não é todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente” (181a). Agora pode-se fazer a separação entre Amores qualitativamente diversos, que valem diferentemente: o Popular, mais voltado para o corpo e referente a homens e mulheres; o Celestial, amor entre homens, amor do homem ao rapaz. Pode-se também fazer a distinção entre formas de amor aos rapazes: um amar que deseja “acompanhar toda a vida e viver em comum”, outro que é enganoso e que, “depois de tomar o jovem em sua inocência e ludibriá-lo, parte à procura de outro” (181d). Ou seja, torna-se possível distinguir o bom do mau amante, estabelecer as bases para a estilização da conduta amorosa.

A instauração da possibilidade de valoração, a partir da distinção entre um Amor superior e outro inferior, permite ainda a análise sociológica e política da questão do homoerotismo, da homofilia. Torna-se justificável examinar “a lei do amor” nas diferentes cidades. Vê-se então que, enquanto em Atenas ela é complexa (certamente porque o regime democrático e a diversidade de posições filosóficas tendiam a multiplicar pontos de vista sobre a questão), em outras cidades “a lei do amor” parece rigidamente estabelecida. Importante é que Platão, através de Pausânias, mostra a estreita ligação entre regimes políticos, uso da palavra e valoração da homofilia:

Em Élida, na Lacedemônia, na Beócia, e onde não se saiba falar, simplesmente se estabeleceu que é belo aquiescer aos amantes, e ninguém, jovem ou velho, diria que é feio, a fim de não terem dificuldades, creio eu, em tentativas de persuadir os jovens com a palavra, incapazes que são de falar; na Jônia, porém, e em muitas outras partes é tido como feio, por quantos habitam sob a influência dos bárbaros. Entre os bárbaros, com efeito, por causa das tiranias, é uma coisa feia esse amor, justamente como o da sabedoria e da ginástica; é que, imagino, não aproveita aos seus governantes que nasçam grandes ideias entre os governados, nem amizades e associações inabaláveis, o que justamente, mais do que qualquer outra coisa, costuma o amor inspirar (182b-c).

O Amor Celestial — que tem o Alto como origem e destinação —, quando bem conduzido, une homens que se libertam pela persuasão da palavra amorosa — o que bárbaros não entendem e tiranos não podem admitir. É um amor que não convive com a servidão, a não ser a servidão voluntária: ao próprio amor, à virtude, ao bem:

É com efeito norma entre nós que, assim como para os amantes, quando um deles se presta a qualquer servidão ao amado, não é isso adulação nem um ato censurável, do mesmo modo também só outra única servidão voluntária resta, não sujeita a censura: a que se aceita pela virtude. Na verdade, estabeleceu-se entre nós que, se alguém quer servir a um outro por julgar que por ele se tornará melhor, ou em sabedoria ou em qualquer outra espécie de virtude, também esta voluntária servidão não é feia nem é uma adulação (184b-c).

Pausânias ainda acrescenta em sua conclusão:

Este é o amor da deusa celeste, ele mesmo celeste e de muito valor para a cidade e os cidadãos, porque muito esforço ele obriga a fazer pela virtude tanto ao próprio amante como ao amado (185b-c).

Esse esforço é tanto no sentido ético quanto pedagógico: é o amor celestial que anima o trabalho docente — que culmina na docência erótico-filosófica — e estabelece a estreita ligação, para os gregos, entre pedagogia e pederastia.[13]

Em seguida, Erixímaco toma a palavra (no lugar de Aristófanes, acometido por soluços). Faz um discurso “científico”, falando sobretudo na perspectiva da medicina de Empédocles de Agrigento e de Alcmeão de Crotona. O Amor surge então como Philia (que Empédocles contrapunha a Neikos, Discórdia ou Ódio), princípio universal de atração dos semelhantes. Esse princípio rege a medicina, mas também a ginástica, a agricultura, a música (187a), pois “também a música, no tocante à harmonia e ao ritmo, é ciência dos fenômenos amorosos” (187c).

Erixímaco concorda em que há dois Amores, um celestial e outro popular; o importante, porém, é que tanto na natureza como no homem estejam aliados à moderação, à harmoniosa convivência dos opostos. Do contrário, podem advir os males causados pelo amor associado à violência, aos excessos, à imoderação: doenças (nos homens, animais, plantas), pestes, geadas, granizos… (188b). Sendo universal o poder do Amor, é preciso cuidar para que ele se realize com sabedoria e justiça entre os homens, conclui Erixímaco.

Aristófanes, o comediógrafo, começa seu discurso retomando o tema do poder do Amor. Mas para se entender esse poder é necessário, afirma, conhecer a natureza humana e suas vicissitudes (189d). Para tanto, lança mão de um mito, um dos mais famosos mitos contidos na obra de Platão.

Inicialmente, diz Aristófanes, foram três os gêneros de humanidade: o masculino, o feminino e o andrógino. O primeiro era constituído por duas partes masculinas, o segundo por duas partes femininas, o terceiro por uma parte masculina e outra feminina. As duas partes de cada um desses humanos primitivos se situavam como cara e coroa de uma moeda. Assim, “inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos…” (189e-190a). Tal conformação dava a essa humanidade anterior grande mobilidade: esses seres duplos moviam-se nas duas direções e podiam, apoiando-se em seus oito membros, locomover-se em círculo. Eram fortes, mas dotados de grande presunção. Por isso, voltaram-se contra os deuses e tentaram mesmo fazer uma escalada ao céu para atacá-los. O castigo de Zeus à hybris dos humanos primitivos consistiu em cortá-los, separando verso e reverso. Apolo incumbiu-se de retocar os seres assim divididos, numa operação plástica que inclusive fez o rosto voltar-se para o lado do corte. Mas o que a plástica divina não pôde mudar foi a sensação de incompletude e a ânsia de cada metade, daí por diante, unir-se à outra. O que primitivamente fora um duplo masculino são agora duas metades masculinas que se procuram; o que antes fora um duplo feminino são agora duas metades femininas que se querem completar; o que fora um duplo andrógino resulta em parte feminina e parte masculina que tentam refazer, no amor, a unidade perdida. O amor é, assim, fundamentalmente, não busca do semelhante, mas busca da totalidade partida, da unidade quebrada. Por isso, o amor parte desse sabor que o ser humano experimenta de falta, de mutilação, de incompletude. O desejo de unir-se ao amado provém dessa sensação de se ser apenas parte, metade de um todo:

O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós éramos um só, e agora é que, por causa de nossa injustiça, fomos separados pelo deus… (192e-193a).

Mas o pior pode ainda acontecer. Se os humanos mutilados não forem pios e reverentes aos deuses, nova divisão — terrível, mortífera — pode ocorrer:

[…] Se não formos moderados para com os deuses, é de temer que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas esteias estão talhados de perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem (193a).

A impiedade e a imoderação podem, desse modo, transformar as humanas metades que procuram se reunir e se completar pelo amor em metades de metades, numa divisão lateral que produz figuras semelhantes às das esteias funerárias, incapazes de amar.

É a vez de Agatão, o vencedor da véspera. Seu discurso é marcadamente “literário”, no sentido pejorativo de um beletrismo que multiplica citações e ornatos superficiais. O estilo carregado de lantejoulas corresponde ao Amor que retrata. De fato, o Eros pintado por Agatão nada tem da grandeza, da força, da imponência e da gravidade dos que foram apresentados pelos antecessores. Nem princípio teogônico e cosmogônico, nem força universal de atração dos semelhantes, nem impulso de busca da totalidade fundamentado no mito sobre a origem dos homens: é, ao contrário, o deus mais jovem, mais belo e mais feliz. Jovem, não é responsável: não é causa; jovem, sempre jovem, foge da velhice (195c). É o deus mais delicado, tenro, de constituição úmida (196a). Não cometendo nem sofrendo injustiça, é o melhor dos deuses, afirma Agatão. É enfim o Amor que rege as relações de superfície, amenas, cordiais, mas sem profundeza e sem compromisso com o trágico — pois é tão somente o Eros que leva à sociabilidade (197d). Infantil, ingênuo-malicioso, esvoaçante, o Eros de Agatão é um Cupido de Watteau.

Afinal, chega a vez de Sócrates. Ironicamente diz-se embaraçado por falar depois de “tão belo e colorido discurso” (198b). E pede permissão para, antes do elogio ao Amor, usar seu modo preferencial de falar: o diálogo. Passa então a embaraçar Agatão com suas perguntas. Leva-o a concluir que o Amor não pode ser o mais belo e o melhor dos deuses. Se amor é sempre amor de algo, é amor do que não se tem; se ama o belo e o bom é porque é carente do que é belo e bom. Isso não significa que necessariamente seja feio e mau. E, para demonstrá-lo, Sócrates recorre ao discurso que ouvira de Diotima de Mantineia.

Diotima é conhecida apenas através do Banquete e muitos a consideram uma criação da ficção platônica. Outros estudiosos, porém, veem nela uma dessas sacerdotisas de Apolo que, inspiradas pelos deuses, iniciavam os homens na sabedoria divina. Diotima seria uma dessas intermediárias entre homens e deuses, exercendo uma função comum às mulheres das grandes famílias de Mantineia.[14] Dela sabemos, pelo Banquete, que, além de ter iniciado Sócrates no conhecimento do Amor e pelo Amor, teria também sido chamada pelos atenienses para conjurar a peste e purificar a cidade (440 a.C). Estava, assim, a serviço de Apolo Pítio ou purificador. Em sua missão religiosa, amor e purificação estavam intimamente ligados.

Dela é que Sócrates teria aprendido que o amor carecendo do belo e do bom não é necessariamente feio e mau. E que existe também algo entre sabedoria e ignorância: o opinar certo (202a). Diotima teria revelado a Sócrates a existência de um plano intermediário entre os extremos, ela que servia de mediadora entre homens e deuses. Eros surge então, na fala atribuída a Diotima, como um ser entre os mortais e imortais: um daimon, um grande gênio, dotado de um poder especial:

O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio     em qualquer outra coisa, arte ou ofício, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor” (202e-203a).[15]

Eros, mediador, tem a função de interpretar, de transmitir: é como a linguagem. Só que uma linguagem que se tece na verticalidade: no relacionamento humano/divino.

A natureza intermediária de Eros é explicada por sua origem, mostra Diotima: Eros é filho de Pobreza e do filho de Prudência, Recurso ou Expediente. Da mãe herdou a fome, a carência permanente, insaciável, a mendicância; do pai, as artimanhas com que busca suprir suas necessidades. Ser mediano, carente, ardiloso, Eros é filósofo: é amor à sabedoria que não possui, mas deseja incessantemente, pois o amor é amor do belo e a sabedoria é uma das coisas mais belas (204b). Filósofo, Eros existe entre a ignorância e a sabedoria: é a permanente tentativa de passagem de uma à outra. E o que ocasiona é sempre “um parto em beleza, tanto no corpo como na alma” (206b).

A conquista do belo por Eros é descrita por Platão/Sócrates/Diotima — coro de vozes que se entrelaçam — como uma ascese, uma escalada progressiva:

Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por ele se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios e para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo (211b-c).

De um belo corpo para todos os corpos belos — da singularidade à totalidade, ainda no plano empírico — o Amor vai conduzindo à incorporeidade do belo em si, à ideia, forma ou essência de Beleza. Essa ascese erótica do sensível ao inteligível é análoga à realizada pelo “método dos geômetras”: Eros tem função semelhante à das matemáticas.[16] E é uma ascese gradativa: do amor aos belos corpos passa-se ao amor a realidades menos corpóreas — os ofícios — para chegar à inteligibilidade das ciências. Até que, em ascensão universalizante e integrativa, atinge-se o cume: a contemplação do Absoluto como Beleza. O amante de persistente amor, amor filosófico, defronta-se afinal com o Amado Perfeito, o Amado Ideal.

Sobre a face belíssima do Amado Absoluto, objeto de um amor que ultrapassara a contingência e o relativo, absolutizando-se; sobre essa Beleza fonte de todas as belezas que atraem todos os desejos, Diotima/Sócrates/Platão pouco falam. É que ali cessam as tramas da linguagem, ali é quase Silêncio. Diante do não-hipotético — da Beleza em si necessária — cessam os enlaçamentos relativos e relacionais do logos. Com modéstia helênica, que evita a hybris, a desmesura, a ultrapassagem do humano apenas humano, Platão, no Banquete, nos deixa na fronteira, no limite extremo entre a terra dos homens e o reino da Divina Beleza. A linguagem é como os mortais se abeiram desse reino, sem jamais aí penetrar.

Falar do Absoluto ou supostamente a partir dele será empreendimento do neoplatonismo helenístico de Plotino, já bafejado pela hybris da religiosidade oriental, que ressurge na proposta básica da filosofia associada ao cristianismo. E aparece com toda a força na mística de raízes neoplatônicas. É a linguagem desse Eros místico que tece os cantos de amor de Teresa de Ávila (1515-1582): cantos de amor incondicionado ao Amado Incondicional. Como neste Soneto a Cristo Crucificado, que lhe é atribuído:

No me mueve, mi Dios, para quererte

el cielo que me tienes prometido,

ni me mueve el infierno tan temido

para dejar por eso de ofenderte.

Tú me mueves, Señor; muéveme el verte

clavado en una cruz y escarnecido;

muéveme ver tu cuerpo tan herido;

muéveme tus afrentas y tu muerte.

Muéveme, al fin, tu amor, y en tal manera,

que aunque no hubiera cielo yo te amara,

y aunque no hubiera infierno te temera.

No me tienes que dar porque te quiera;

pues aunque lo que espero no esperara,

lo mismo que te quiero te quisiera.

Em Platão, a ascese que conduz às margens do Absoluto, do anti-hipotético, permanece ascese apolínea: contida pelo senso de medida, a instaurar a luminosidade cada vez mais intensa do dia da razão, não a noite mística na alma. E o que confere incomparável amplitude filosófica à concepção platônica do amor é que, após a subida em direção ao plano da essencialidade e da incorporeidade, mas também da ordenação lógico
-ontológica; após a submissão dos impulsos passionais de Eros a Apolo, através da intelectualização da paixão; após as sucessivas transferências sublimadoras — eis que a paixão eclode no texto do Banquete: crua, ébria, selvagem, indomada. Agora, não mais a serenidade dos discursos — literários, científicos, retóricos, filosóficos. Agora, o barulho, a música, o tumulto, a desordem, a embriaguez. O amor mostra outra face: é Alcibíades que chega.

[…] E súbito a porta do pátio, percutida, produz um grande barulho, como de foliões, e ouve-se a voz de uma flautista. Agatão exclama: Servos! Não ireis ver? Se for algum conhecido, chamai-o; se não, dizei que estamos bebendo, mas já repousamos. Não muito depois ouve-se a voz de Alcibíades no pátio, bastante embriagado, e a gritar alto […] (212d).

Com Alcibíades, a paixão dionisíaca, incontida, desmesurada. Chega teatralmente este mensageiro de Dioniso, considerado o mais belo grego de seu tempo: “cingido de uma espécie de coroa tufada de hera e violetas, coberta a cabeça de fitas em profusão” (212e). Senta-se ao lado de Agatão. Só depois percebe que está junto também de Sócrates: seu amado inconquistável. Incentivado por Erixímaco, acaba concordando em fazer também um discurso sobre o Amor; mas adverte: será o discurso de um homem embriagado depois de sóbrios discursos ditados pela razão (214c). O elogio que faz do Amor é, na verdade, elogio de Sócrates, mas marcado pela mágoa da rejeição. O belo Alcibíades exalta o feio Sócrates, esse inatingível objeto de desejo. Sócrates é feio, mas — reconhece o amante recusado — semelhante a esses silenos “que têm em seu interior estatuetas de deuses” (215b). Alcibíades, incontido, nada esconde: relata as inúteis tentativas e as muitas artimanhas para seduzir Sócrates, para cativá-lo, prendê-lo à sua paixão. Sócrates escapa sempre. E escapa, diz Alcibíades, porque engana, invertendo os termos do binômio erasta/erômeno: “fazendo-se de amoroso, enquanto é antes na posição de bem-amado que ele fica, em vez de amante” (222b). Alcibíades é o amor-paixão, acorrentado à imediatez, ao presente, ao sensível, à urgência do aqui e do agora. Não apreendendo o sentido do adiamento e da ascese, não pode ver no amor uma aprendizagem, não aceita o convite à conversão socrático-platônica do erotismo na philia que culmina na filosofia.

O final do Banquete é cheio de profundas significações. Depois da fala de Alcibíades, irrompem na sala os foliões. O vinho volta a ser servido e bebido em demasia. Alguns partem, outros dormem. A luz do dia vem encontrar despertos apenas Agatão, Aristófanes e Sócrates, que conversam e bebem da mesma taça. A taça — a mesma — está cheia de vinho ou de palavras? O certo é que o sono acaba por dominar Aristófanes, a comédia, depois Agatão, a tragédia. Sócrates ainda os acomoda no leito, antes de partir. Sócrates: a filosofia itinerante, o logos em vigília que se recusa a adormecer.

* * *

Um dos mais belos e ricos diálogos de Platão, o Fedro retoma o tema do amor, vinculando-o estreitamente à questão da linguagem. O cenário é importante e, em parte, já decide do desdobramento das especulações: a conversa entre Sócrates e Fedro transcorre enquanto caminham fora da cidade, por uma estrada, no campo, que de Atenas leva a Mégara. É região de divindades silvestres, arcaicas, menos contidas e disciplinadoras do que as que presidem as instituições da pólis. O cenário é, assim, propício à retomada de antigas concepções religiosas sobre a alma, a linguagem, o amor.

A conversa gira inicialmente em torno do texto do discurso de Lísias sobre o amor, que Fedro mostra a Sócrates. A tese defendida pelo retórico é que, na relação amante/amado, é preferível um amante sem paixão, pois isso possibilita uma amizade duradoura, o que é melhor ética e socialmente. Esse mote é glosado por Sócrates num primeiro discurso. Mostra que o amor é um desejo, o desejo do belo; mas é necessário distinguir entre o desejo do prazer, instintivo e estranho à razão, e o desejo do melhor, resultado da reflexão. Mostra ainda que o amoroso apaixonado, governado pela paixão, é escravo do prazer: um doente, que quer o amado como coisa e joguete, “como um lobo ama um cordeiro” (241d). É um governado que quer governar (238e-239a), um escravo que escraviza.

O primeiro discurso de Sócrates possui tom ascético, parecendo retomar a proposta apolínea de seu discurso no Banquete. Mas a pólis, com seus deuses disciplinadores, muralhas, limites, está cada vez mais distante. E cada vez mais as divindades campestres parecem exercer influência sobre o logos socrático. Sócrates previne: sente-se à beira da ninfolepsia, quase a ser possuído pelas ninfas; o rigor racional parece ceder à liberdade maior da poesia: as palavras que profere “não estão longe de ser ditirambos” (238d). O entusiasmo o toma, como um vinho interior que lhe sobe à cabeça. O segundo discurso que faz sobre o amor é então o elogio do amor-delírio. Começa por distinguir os diferentes tipos de delírio: o da arte divinatória, profética; o delírio iniciático, também de cunho religioso; a inspiração poética; finalmente, o amor.

A fundamentação do amor delirante mergulha no mito. Diz respeito à natureza e à origem da alma imortal. A alma é comparada a uma carruagem alada onde um cocheiro também alado procura controlar e conciliar as marchas dos dois cavalos que a puxam. A alma dos deuses é à imagem de uma carruagem puxada por dois cavalos de boa índole e de marchas perfeitamente entrosadas. Já a alma humana oscila entre o racional e o instintivo, sofre a tensão e o conflito de dois ímpetos opostos: se o cavalo branco é dócil e tende ao bem, o negro é rebelde, sanguíneo, de difícil comando. É que o branco “é companheiro da opinião verdadeira” e, portanto, fácil de ser conduzido por palavras, enquanto o negro “é companheiro da desmesura” e só se submete à força (253d-e).

Ainda em sua condição alada, anterior à existência terrena, as almas humanas, ambivalentes, seguem, no “lugar supraceleste” (247c-e), o cortejo dos deuses; é quando podem contemplar, de diferentes maneiras, as ideias eternas, em particular a Beleza. Mas o fato é que ocorre a “queda”: as almas perdem as asas, a morada no Alto, e prendem-se a corpos. A volta, a retomada das asas, será por via da reminiscência: o (re)conhecimento que, partindo dos objetos sensíveis — cópias, embora imperfeitas, das ideias —, vai aos poucos recuperando a visão inteligível, a visão das essências, nas várias etapas da escalada de Retorno. Na República, Platão descreve essas etapas de dois modos: de forma mais racional, através da imagem matemática da “linha dividida” (final do livro VI); de forma dramática, através da “alegoria da caverna” (começo do livro VII). No Fedro, mostra que o retorno mais rápido é feito pelo “homem que foi amigo leal do saber ou que amou os jovens com amor filosófico” (249a). Porque “só o pensamento filosófico é alado” (249c) e só o amor filosófico é alante e capaz de reconduzir à Beleza. O amor-delírio do Fedro não é paixão que prende ao imediato e ao corpóreo; ao contrário, põe o homem fora de si, mas liberando-o em direção à Beleza que o espera sempre mais além, no mais alto de si mesmo.

O Fedro, como ressalta Robin,[17] contém dois epílogos para as peripécias amorosas entre os homens. Dois epílogos correspondentes a dois dramas, um aparente, outro interior. Dois epílogos que correspondem a dois eixos de construção da experiência amorosa.

O primeiro é o do amor submetido à ordem e à medida. Neste modo de estilizar o amor, o amante, em vez de tentar escravizar o amado, procura libertá-lo filosoficamente, para que ambos se dirijam ao amor à sabedoria, que os alimentará. O resultado é, então, a perfeita reciprocidade: o objeto de amor, o amado, acaba tornando-se também sujeito de amor, amante. E o amante, afinal, vê no amado outro amante. A face do outro é como sua própria face contemplada num espelho: Eros contempla Anteros.

O segundo epílogo é o do amor sem domínio de si, sem metrética, amor dominador onde não entra a ponderação, a medida da filosofia. É o amor de duas almas desmesuradas, entregues à avassaladora paixão, sem continuidade e sem asas, tanto na vida quanto na morte. Esses amantes — Dante se lembrará disso — habitarão as regiões inferiores do céu.

Mas, na verdade, esses dois finais traçados para dois tipos de amor não encerram o assunto: o tema do amor é inesgotável. Depois de tanta conversa sobre o amor e sobre a linguagem, depois de Sócrates defender a superioridade da palavra oral sobre a palavra escrita, depois de criticar a retórica, mas de acenar para a possibilidade de uma retórica filosófica capaz de persuadir os próprios deuses, amor e linguagem continuam jorrando sem ponto final, água viva. Por isso mesmo, toda conclusão é provisória, todo estancamento artificial e efêmero. E o Fedro somente pode terminar convidando para novas caminhadas.

Primeiro, com uma prece de Sócrates a Pã — o deus que, no Crátilo, é descrito como aquele que faz conhecer tudo, aquele que, filho de Hermes, põe tudo em circulação e é ou a própria linguagem ou é irmão da linguagem (408c-d).

Depois, com uma saudação em estilo pitagórico. Diz Fedro a Sócrates: “Entre amigos tudo é comum”.

Finalmente, com o convite de Sócrates, o perfeito amante, o amor em vigília, docente, itinerante: “Caminhemos!”

Notas

[1] Veja-se: Koyré, A., Introduction à la lecture de Platon, Paris, Gallimard, 1962, pp. 17-21.

[2] República, livro X, 595a-608b. Veja-se também: Schuhl, P.-M., Platon et l’art de son temps — Arts plastiques, Presses Universitaires de France, 1952; e “Platon et la musique de son temps”, em Études platoniciennes, Paris, puf, 1960.

[3] Deleuze, G., Lógica do sentido, trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 131.

[4] Veja-se, particularmente: Michel, P.-H., De Pythagore à Euclide; Paris, Les Belles Lettres, 1950.

[5] Diés, A., “Introduction” a La République, Paris, Les Belles Lettres, 1947, p.v

[6] Bachelard, G., L’air et les songes, Paris, Librairie José Corti, 1943.

[7] Deleuze rejeita o Nietzsche bachelardiano, ligado ao imaginário aéreo, ascensional; para ele, a verticalidade nietzschiana é, de preferência, profundidade e descida (op. cit., pp. 132-3n).

[8] Foucault, M., História da sexualidade, v. II: “O uso dos prazeres”, Rio de Janeiro, Graal, 1984.

[9] Veja-se, particularmente: Robin, L., La théorie platonicienne de l’amour, Paris, Presses Universitaires de France, 1964

[10] Méridier, L., “Notice” sobre Cratyle, Paris, Les Belles Lettres, 1961.

[11] Robin, L., La pensée grecque, Paris, Éditions Albin Michel, 1948, p. 226

[12] Joly, H., Le renversement platonicien: logos, episteme, polis, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1985, p. 31.

[13] Marrou, I., Histoire de l’education dans l’antiquité, Paris, Éditions du Seuil, 1948, pp. 55 e 55n.

[14] Godel, R., Socrate et Diotime, Paris, Les Belles Lettres, 1955, p. 35.

[15] Estamos utilizando a bela tradução do Banquete feita por José Cavalcante de Souza, Difel/Abril Cultural, 1983 (Platão, col. “Os Pensadores”).

[16] Brochard, V., “Sur le ‘Banquet’ de Platon” in Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris, J. Vrin, 1954.

[17] Robin, L., “Notice” sobre Phèdre, Paris, Les Belles Lettres, 1961. pp. CV-CVIII.

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